quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Acção de formação

A personagem principal desta história é um jovem inteligente e criativo, um pouco envergonhado, e de poucas palavras. Foi admitido há pouco tempo numa grande empresa, devido ao seu currículo e boas referências, e tem conseguido fazer um trabalho muito apreciado mas não sem algumas dificuldades em aprender a lidar com o ambiente corporativo. Os truques e as manhas dos mais experientes não lhe são familiares, e a sua inexperiência e ingenuidade não deixam de se surpreender com o que os seus colegas e chefes são capazes de fazer e de dizer para se coroarem com os louros do trabalho alheio. Disposto a investir o esforço necessário para continuar a fazer um bom trabalho e obter o justo reconhecimento, a personagem principal desta história contribui, dia após dia, com o que tem de melhor, renegando as tramas corporativas. Recentemente, foi bater à porta do seu chefe, para explicar como tinha estado a elaborar uma ideia que poderia trazer grandes benefícios para a empresa. O chefe, do lado de dentro do gabinete, mandou-o avançar, sem levantar os olhos dos papéis: «Meu caro: vejo que está já perfeitamente adaptado à empresa e à maneira como aqui fazemos as coisas. Deixe-me só sugerir-lhe que, dado que gosto de dar aos meus colaboradores toda a atenção que merecem, da próxima vez que queira partilhar alguma coisa comigo, avise a minha assistente com alguma antecedência… assim, estaremos muito mais à vontade e teremos todo o tempo do mundo para falarmos das nossas preocupações e das nossas ideias. Aproveito também para lhe dar os parabéns pela prontidão dos seus relatórios. Não é que eu queira andar sempre em cima das pessoas a saber o que elas fazem, mas é importante para a empresa que eu esteja atento a tudo o que se passa com os meus colaboradores e esteja disposto a ouvi-los e dar-lhes os meios de que eles necessitam para fazerem o seu trabalho. Diga lá, sou todo ouvidos…» A personagem principal desta história, ainda a fazer que sim com a cabeça ao ritmo das recomendações do chefe, e ainda de pé, sentou-se na cadeira à frente da secretária do chefe. Encheu o peito para começar a falar, mas o chefe interrompeu: «Espere um momento, não se esqueça do que vai dizer…» Levantou o auscultador do telefone, e disse: «Traga-me um café. Obrigado». A personagem principal desta história tentou não se esquecer do que ia dizer, mas não conseguiu deixar de se distrair com a interrupção, e pôs-se a pensar na ironia do pedido do chefe: «Traga-me um café…», como se a ordem das coisas se tivesse invertido e o chefe estivesse a fazer uma exclamação acerca do seu estado, isto é, como se o chefe estivesse dentro de uma chávena que se aproximava da boca escancarada de um café (que poderia ser um café liquido ou um café tipo A Brasileira do Chiado…) e se desse conta de que iria ser tragado. Mas, por outro lado, a situação não deveria ser do seu desagrado, porque, a seguir, agradecia: «obrigado». Mas, ainda por outro lado, este «obrigado» parecia pouco espontâneo e talvez ele estivesse de facto a dizer que o tragava um café obrigado, isto é, como se tivessem obrigado um café a traga-lo. Enfim… «Então? Que tinha para me dizer? Não se esqueça de que sou um homem ocupado! Diga lá, vá…» A personagem principal desta história afastou aqueles pensamentos parvos e tratou de se concentrar no que tinha para contar ao chefe. Mas, subitamente, o chefe interrompeu-o mesmo antes de ter começado: «Desculpe, que educação a minha… nem sequer lhe perguntei: que quer que peça para si? Café, água, um chá?» A personagem principal desta história hesitou, apetecia-lhe uma coca-cola… mas lembrou-se daquele vídeo da internet acerca da mistura da coca-cola com os mentos e decidiu que ainda precisaria de algum tempo para se adaptar à ideia. Talvez uma água… Entretanto, a Anabela entrou no gabinete, pousou um café, e disse: «tomei a liberdade de trazer dois…» e deixou outro café em frente à personagem principal desta história. «Aqui tem,» disse o chefe, «ninguém como a Anabela para ajudar a tomar decisões. Rapaz: temos de trabalhar a sua auto-estima. Na minha equipa gosto de pessoas assertivas, de decisões rápidas, não se esqueça. Vamos encontrar um programa de formação à sua medida, para trabalhar esse aspecto.» E, antes que a Anabela saísse: «Anabela, veja-me o programa daqueles tipos que estiveram cá a fazer uma formação o ano passado, aqueles que trabalharam o Benjamim quando a gente o mandou para as vendas, lembra-se?» A Anabela fez que sim, e saiu. O chefe insistiu, depois de ter tragado o café num só gole: «Então? Diga.» A personagem principal desta história percebeu imediatamente que não iria ter oportunidade de beber o café que a Anabela lhe tinha posto à frente, e tratou de tentar concentrar-se o melhor que pode a escolher as palavras para ser assertivo, mudou até ligeiramente a expressão, de forma a que ficasse com um olhar mais agressivo, a condizer com a assertividade do discurso que estava a preparar, mas sem querer parecer demasiado duro, para não criar um mal entendido. Afinal, estava ali para apresentar uma ideia que lhe parecia boa e não queria que a ideia fosse liquidada à partida por ele não ter sabido apresentá-la ou por o chefe se zangar com ele por assumir uma expressão desnecessariamente dura. Na universidade, tinham falado bastante sobre isso, de como as ideias não chegam, de como é necessário vestir uma boa ideia de forma a fazê-la passar, ser bem compreendida, portanto isso não era novidade para ele. Aqui vai… Subitamente, o telefone toca, o chefe atende, põe um ar sério de respeito militar, levanta-se, e diz «sim senhor engenheiro, sim senhor, imediatamente,» pousa o telefone com um longo suspiro que lhe fez escorrer fato abaixo o momentâneo e súbito ar de respeito militar: «Rapaz: tenho de ir imediatamente falar com o senhor engenheiro sobre um assunto da maior importância. Peço-lhe que me faça um relatório breve e conciso acerca do nosso assunto, das ideias que estivemos agora a discutir, ok? Não se esqueça: os seus relatórios são da maior importância para a equipa. Depois, peço à Anabela para o chamar, ok? Obrigado por ter vindo falar comigo.» A personagem principal desta história levantou-se, saiu do gabinete, e foi à máquina buscar um café. Ao fim da tarde enviou ao chefe um relatório sucinto apresentando a sua ideia. Uma semana depois, o chefe mandou-lhe um email: «Analisei o relatório que me enviou na sequência da nossa reunião da semana passada. Na primeira oportunidade, falarei consigo. Fale com a Anabela para combinar as datas para a sua acção de formação na área da comunicação. Falta-lhe assertividade e capacidade de comunicar, temos de trabalhar nisto, ok? Não se esqueça de que terá de ser você a apresentar os pormenores da ideia ao senhor engenheiro» Ficou radiante. Parecia que o chefe tinha gostado da ideia e estava a querer investir no seu futuro propondo-lhe já uma acção de formação e dando-lhe uma oportunidade de brilhar dentro da empresa. Passados alguns dias, recebeu novo email: «Falei com o senhor engenheiro acerca da nossa ideia. Ele ficou entusiasmado e vai libertar uma verba do orçamento para a desenvolvermos. Já fez a formação que lhe propus? Gostaria que fosse você a apresentar o plano de desenvolvimento a toda a empresa» A personagem principal desta história foi imediatamente falar com a Anabela, porque não queria que o chefe achasse que estava ser relutante ou a desperdiçar uma oportunidade. A Anabela, quando o viu chegar disse-lhe: «Já sei que está aqui para combinarmos as datas da sua acção de formação. Vou fazer uma agenda que incluirá outros colaboradores no mesmo programa, e depois digo-lhe quais são os dias, ok?» Assim ficou. Passadas algumas semanas recebeu um email da Anabela com as datas e um outro email do chefe: «Vitória! Dentro de poucos dias faremos a apresentação do nosso assunto ao board e conto consigo. Não fale disto a ninguém, ok? Que tal correu o seu programa de formação? Mande-me um relatório, eu sei que os tipos são bons mas quero ouvir a sua opinião, ok?» A personagem principal desta história consultou a agenda, e confirmou a disponibilidade da data para a acção de formação, que seria daí a poucos dias. No escritório parecia haver uma excitação especial, que ia crescendo de dia para dia. Os colaboradores mais antigos passavam em direcção ao gabinete do chefe e regressavam sorridentes, comentando como o momento era importante para a empresa. A personagem principal desta história tinha a certeza de que estavam a falar da sua ideia, e do sucesso que ela teria, mas não queria abordar o assunto com ninguém, para não trair a confiança do chefe.

Quando finalmente passou um dia inteiro na acção de formação sobre comunicação e assertividade, que lhe pareceu um bocado exagerada na parte da assertividade, pelos gritos e pelo falar alto, a que ele não estava habituado, nem a sua mãe acharia uma coisa boa, voltou ao escritório e fez o relatório que lhe tinha sido pedido pelo chefe, tentando identificar todos os aspectos positivos e sendo o mais objectivo possível. Pouco depois de o enviar, recebeu também por email a resposta do chefe: «Lamento que não tenha podido aqui estar para a apresentação da nossa ideia ao board. No entanto, fico contente por ter achado o programa em que o inscrevi interessante e útil e isso será muito mais importante para a sua carreira do que uma simples apresentação. Fico contente por se ter integrado perfeitamente nesta equipa e conto consigo para me apoiar em ideias futuras.»

 

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