sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Milano Centrale - Dijon

Milano Centrale-Dijon, carruagem 16, cama 81. 23h15. Já me tinha deitado quando entrou uma mulher africana. Pediu-me ajuda, tinha duas malas grandes e pesadas mais bagagem avulsa. Ficou apreensiva com a falta de espaço. Disse-lhe que pusesse as malas em cima de uma das seis camas do compartimento. Olhou-me, desconfiada. Eu disse-lhe que o funcionário do comboio me tinha garantido que haveria apenas quatro passageiros na cabina, pelo que achei que poderia perfeitamente utilizar uma das duas camas livres para as malas. Havia três camas de cada lado do compartimento, sobrepostas. Pareceu-me que as duas camas de baixo seriam as menos procuradas. Ela concordou. A meio da operação de carga, apareceu o terceiro ocupante do compartimento -- um homem, meio calvo, com ar simpático. Deixou terminar a estiva e ocupou a cama mais alta, à minha esquerda.
A mulher agarrou-se ao telefone e não parou de falar, em voz alta. Os passageiros italianos do compartimento ao lado vieram reclamar, indignados, porque tinham duas crianças a dormir. A mulher falou mais baixo mas não deixou de tagarelar, em Italiano e noutra língua africana. Ajudei o meu vizinho de compartimento a pôr uma enorme mochila na bagageira acima das nossas camas, junto ao tecto do compartimento. Ele, por sua vez, prontificou-se a fechar as persianas da janela e da porta, para que pudéssemos dormir. O comboio partiu às 23h35, no horário. Logo depois, veio o funcionário responsável pela carruagem, pediu-nos os bilhetes e os documentos, confesso que fiquei suspeitoso --os bilhetes, tudo bem, ele era o fiscal do comboio agora, os meus documentos…--, mas vi os outros passageiros a dá-los e dei-lhos também. O meu vizinho -- talvez percebendo a minha preocupação -- explicou-me que o passaporte era necessário para mostrar às autoridades na Suíça, onde chegaríamos dentro de duas horas. O responsável pela carruagem guarda os documentos para mostrar à polícia, evitando assim acordar-nos. Excelente serviço, achei. A nossa parceira africana precipitou-se para trancar a porta do compartimento -- achei estranho que o fizesse, mas pensei que seria normal prevenir que alguém tentasse entrar no nosso compartimento enquanto estivéssemos a dormir. Demos as boas-noites, a mulher continuou ao telefone, fazendo um esforço para falar baixo, eu adormeci.
Batem à porta, autoritariamente, com batida oficial. --Police!
4h35! Não pode ser a fronteira Suiça, pensei. --Police! On veut parler avec Madame Z’ntal.
O meu vizinho de viagem levantou-se e tentou encontrar a maçaneta para abrir a porta. Não a encontrou imediatamente, levou algum tempo a perceber onde estava e como funcionava. Conseguiu abri-la, estavam três polícias franceses à espera -- dois homens e uma mulher --, de documentos na mão. Perguntaram à mulher se tinha “papiers” para entrar em França. Ela respondeu que tinha apenas os documentos italianos -- que com certeza, já sabia estarem caducados… Mandaram-na retirar toda a bagagem do compartimento para sair do comboio. Ela não queria acreditar, tentou passar a porta sem bagagem, visivelmente desorientada e angustiada. A mulher policia insistiu que trouxesse toda a bagagem. Eu e o meu vizinho trocámos olhares de preocupação. A mulher estava numa situação difícil. Pensei que nem sequer poderia ajudá-la a retirar as malas pesadas do sitio onde eu próprio as havia posto. A polícia percebeu a dificuldade que a mulher tinha em transportar todas as malas e sacos e ajudou-a a retirar tudo para fora do compartimento e do comboio.
-- Je ne comprends pas comment il y a des personnes qui se mettent a faire des projects comme ça…-- disse o meu vizinho -- on ne joue pas avec la police française!
Fiquei confuso, pelo sono e pela situação. Tentei organizar os meus pensamentos e emitir uma opinião. Acabei por concordar que não se brincava com a polícia francesa. Quis dormir novamente mas não consegui porque o comboio ficou parado ainda durante muito tempo, fazendo um barulho contínuo estranho. A princípio, nem percebi se já estávamos a andar ou não, mas concluí que estávamos parados e assim ficámos, pelo menos, três quartos de hora. Ainda achei que a mulher voltaria. Não voltou. Pusemo-nos em marcha, finalmente, e acabei por adormecer. Acordei com o comboio a travar. O meu vizinho também acordou, disse-me que deveríamos estar a chegar a Dole, onde era suposto sermos acordados pelo funcionário do comboio. Assim foi, o funcionário bateu à porta poucos segundos depois, entregou-nos os bilhetes e documentos e desejou-nos boa viagem, em francês.
Dole é o condado de origem do conde D. Henrique, pai de D. Afonso Henriques, primeiro rei português. Tencionava visitar Dole nesta viagem, para perceber que laços culturais poderia identificar entre Portugal e a Borgonha. Estávamos a chegar a Dijon, o comboio já pasmava. Reparei que a paisagem era muito bonita, bosques, canais, rios, campos agrícolas. Pouco depois, começámos a ver alguns armazéns e outros indícios de que nos aproximávamos de uma grande cidade. O meu vizinho disse-me que ainda iria trocar de comboio, em Dijon, para chegar a Bruxelas. Adiantou que viajava muito entre Bruxelas e Estrasburgo. --Parlamento Europeu? -- perguntei.
-- Sim, disse ele.
Disse que gostava muito de viajar, por todo o mundo. Já tinha corrido todos os continentes, apaixonava-o sobretudo a América do Sul.
-- Je ne comprends pas comment il y a des personnes qui se mettent a faire des projects comme ça…-- pensei eu.