domingo, 24 de maio de 2009

David Byrne Journal

Quem é que quer saber de listas de classificação dos 50 melhores restaurantes do mundo quando o David Byrne diz que o melhor peixe grelhado se come no Bairro Alto? Ora vejam.

David Byrne Journal

Marttiini

Quando precisarem de uma faquita para filetar peixe como deve ser, Marttiini.

Marttiini

A Mercy: A Novel by Toni Morrison | LibraryThing

Fui à apresentação do último livro de Toni Morrison “A Mercy” traduzido em italiano com o nome “Il Dono” (a dádiva, a oferta). Estavam, para além da Morrison, Umberto Eco e um tal Luigi Sanpietro, moderador. O moderador fez uma introdução, tentando explicar porque tinha chamado ao debate “A História: quem a faz e quem a escreve—uma conversa com Toni Morrison” e não conseguiu explicar nada, a não ser a sua presença supérflua. Umberto Eco incidiu em considerações sobre o romance histórico, mas a verdadeira conversa, a partir do tema da escravatura, fê-la Toni Morrison, falando tranquilamente do racismo. Serena, vernacular, e criativa, com uma voz grave – que leu dois pedaços do livro – Toni revelou-se uma excelente professora de literatura, objectiva, clara, e apaixonante. Falou de como tinha crescido em Lorain, Ohio, uma cidade de emigrantes, de muitas origens diferentes, onde o conceito de “whiteness” não existia, e de como se surpreendeu quando, em 49, foi estudar para Washington, onde existiam letreiros de “colored only”, e de como achou aquilo curioso e mandou um para a mãe, como recordação.

Ainda não li “A Mercy” mas fiquei a saber que fala da história de uma jovem, descendente de portugueses, “with the hands of a slave and the feet of a Portuguese lady”, oferecida pela mãe a um negociante, Jacob, como paga por uma colheita mal sucedida e, segundo Toni, com a convicção de que poderia dar-lhe uma vida melhor.

A Mercy: A Novel by Toni Morrison | LibraryThing

terça-feira, 19 de maio de 2009

Sala

É uma sala simples, quatro paredes, um tecto, e um chão. O chão destaca-se, reverberante, como num desenho de Escher. Não fosse o chão, obra de marceneiros que já não há, a sala poderia estar num hospital antigo: janelas altas, paredes altas, radiadores de ferro dos Anos 40: tudo branco. Na parede voltada a sul, duas janelas – uma é de sacada— aquecem a sala, deixam entrar de manhã dois grandes rectângulos de luz que se projectam no chão e roubam a cor aos tacos de madeira. No lado oposto, um longo e preguiçoso sofá castanho convida a dormitar olhando o ocre ensolarado dos prédios em frente. Acima do sofá, Cargaleiro e Mário Rodrigues não se deixam tocar pela luz. Noutro canto da sala, Nadir Afonso e Pomar, também incólumes. Frente a uma terceira janela, uma estante baixa com uma televisão -- quase sempre desligada -- e a “aparelhagem”, de onde sai Debussy, com a luz clemente das quatro da tarde pelas costas. Já se ouve tilintar a frescura das caipirinhas no bar cubano da esquina, nesta sala quente de Maio.

Neblina

TEXTO ORIGINAL

“Com a chuva, a neblina ia-se rasgando, descendo, separando-se em farrapos e deixando a descoberto trechos de terra, como se dum mar de espuma surgisse um arquipélago. Sobre as pedras lavadas apareciam as mulheres; retardatárias, que caminhavam, apressadamente, em direcção à igreja, uma das mãos no guarda-chuva, a outra a levantar um pouco as saias, para que a água não as esparrinhasse. Não se via o rosto de nenhuma delas.”

Ferreira de Castro, A Missão - 3 novelas (A Experiência), Guimarães & Cª., Lisboa, 1954

RESCRITA 1

A precipitação arrefece o ar, obrigando a neblina a dissipar-se, formando bancos, aumentando a visibilidade (se a visibilidade fosse inferior a 1000 metros, chamar-se-ia nevoeiro). Algumas mulheres, olhando para o chão, caminham rapidamente sobre o empedrado molhado, em direção a uma igreja: protegem-se da água que cai com um guardachuva que seguram aberto numa das mãos; e da água que respinga do chão protegem as saias, puxando-as acima, para que não se molhem.

RESCRITA 2

Manhã sem sombras. Agora chove. A neblina dissolve-se e deixa em nós uma humidade triste de litoral. Atravessam-nos carreiros apressados de mulheres que nos seguem com os olhos os contornos molhados: a chuva caindo das varetas dos chapéus esculpe eternamente em nós o caminho da igreja. Em gestos de mulheres, levantam as saias: que não se ensopem. Não se vêm as mãos de nenhuma delas.

Madame Lambertin

TEXTO ORIGINAL

“Madame Lambertin era flamenga à vista desarmada, e de maneiras bastante livres, mas com certa tinta bondosa. Devia passar bem dos trinta. Quando sorria, o sorriso enchia-lhe a cara toda. Tinha os olhos verdes e bastante vivos. Da janela do meu quarto passei a vê-la atravessar todos os dias a rua, a caminho da brasserie da esquina, em frente, onde ia aplacar um deus insaciável. Voltava com uma cabazada de garrafas de Gueze. Chegava a beber (soube-o depois) às dezoito e vinte por dia. Era decerto o que lhe estragava a frescura, ainda apreciável através da retícula vermelha que já lhe bordava as faces.”

(José Rodrigues Miguéis, Léah e Outras Histórias, Editorial Estampa, Lisboa, 1960)

RESCRITA 1

Costumava vê-la passar, da janela do meu quarto. Madame Lambertin era bem constituída, alta, os seus braços ampliavam-lhe os movimentos do torso, como dançando. A pele, rosada, quase branca, fina, brilhante. No rosto oval a testa, longa, emoldurada por cabelos castanhos, quase vermelhos, uns olhos verdes, e uns lábios que começavam finos nos cantos da boca e se intumesciam no centro, desenhando um pequeno coração que se abria num amplo sorriso bondoso. Atravessava a rua para entrar na brasserie como se atravessasse um campo de papoilas, em busca da fonte do “champanhe de Bruxelas”, que bebia em abundância sem se preocupar com as finas linhas vermelhas que a cerveja já lhe cinzelava no rosto; secando-lhe a frescura de bem mais de trinta primaveras.

RESCRITA 2

Madame Lambertin. A verde bondade dos seus olhos. A doçura de um néctar rosado de pêssego, transparente, a formigar na língua. Uma vivacidade refrescante, leve, mineral. Todos os dias as bolhinhas de Gueuze – o champanhe de Bruxelas -- a atraíam à brasserie, de onde regressava com um largo sorriso e uma vintena de garrafas. O líquido bebia-lhe com prazer o corpo ainda jovem, aflorando na face em finas linhas vermelhas que um pintor da escola flamenga teria retratado num delicado craquelê, revelando os seus bem mais de trinta anos.

domingo, 10 de maio de 2009

Itália, país de oportunidades

Saí de casa com a sensação de que me tinha esquecido de qualquer coisa – o que raramente acontece. Achei que poderia não ter o bilhete de identidade; sem ele não poderia viajar. Não pensei mais nisso, apenas antes de embarcar me voltei a lembrar do assunto e procurei: não tinha. Veio-me a ideia clara de que o tinha deixado no bolso do casaco com que viajara no dia anterior… Procurei uma funcionária da companhia aérea e perguntei se poderia viajar com outro documento: carta de condução, por exemplo. Não, sem documento de identidade não se viaja, poderiam abrir uma excepção e deixar-me viajar exibindo a carta de condução, se já estivesse de regresso ao meu país de residência, mas, neste caso, em início de viagem, não. Decidi tentar a polícia, talvez me pudessem passar uma declaração que me permitisse viajar apenas com a carta de condução (afinal de contas, trata-se de um documento europeu). Fui ao gabinete da polícia, estavam três polícias olhando para um computador.

-- Posso entrar? Esqueci-me do meu documento de identidade, que possibilidades tenho de viajar com outro documento?

-- Que documento?

-- A carta de condução, por exemplo?

-- Não, com a carta de condução não pode viajar. Como entrou aqui? Que documento mostrou para aqui estar?

-- Apenas o cartão de embarque.

-- E como lhe fizeram o checkin sem ter mostrado um documento?

-- Fiz o checkin online.

-- E recusaram-lhe o embarque?

-- Ainda nem sequer tentou embarcar – disse um dos outros polícias.

(Achei que ele queria dizer: o parvo ainda nem sequer tentou…)

-- Não tentei embarcar sem documentos. Percebi que não tinha o documento de identidade e decidi vir aqui perguntar se haveria alguma solução alternativa para viajar.

-- Bom, pode ir para a porta de embarque e tentar…

Comecei a achar que o polícia estava a tentar enganar-me, para depois me poder prender quando tentasse embarcar sem os documentos…

-- Mas, é ou não obrigatório mostrar os documentos antes de embarcar? (eu sabia que estava a ser redundante, mas estava a tentar encontrar a fronteira entre a moral e a lei)

O polícia abriu muito os olhos, como se estivesse a falar para uma criança, e disse:

-- A menina que faz o controlo de embarque é obrigada a pedir-lhe os documentos mas também se pode esquecer de o fazer…

-- Então, se eu conseguir embarcar porque a menina se esqueceu de me pedir os documentos, como regressarei amanhã de Amesterdão, sem documentos?

-- De comboio…

domingo, 3 de maio de 2009