sábado, 18 de julho de 2009

Gel de banho

Devo ser estúpido para me pôr em cima de uma bicicleta em pleno inverno, nesta cidade hostil a ciclistas, enjoativa de fumo e gás, estradas de pedra molhada e carris de tram escorregadios como manteiga. Mas é assim que gosto de ir para o escritório. Desde dezembro que uso as novas bicicletas de aluguer de Milão, pagando uma subscrição anual. Pouca gente usa ainda este serviço, muitos me vêm perguntar como funciona, como se faz, quando custa. Dou estas informações com prazer, orgulhoso por ser um dos primeiros.

Pego na bici, rolo até ao Duomo – sinto o ar frio na cara— continuo em direcção ao Scala, e preparo-me para virar à esquerda, onde já sei que é proibido. Acelero para ganhar espaço para virar, e estúpido, escorrego bruscamente em cima do carril do tram, a bici toma o freio nos dentes, atira-se ao chão, afunda-se no empedrado, eu com ela, meto a cabeça para dentro para não ficar com o nariz colado às pedras, oiço os carros e as motas passando por mim, enrolo-me como posso numa técnica que os samurais inventaram há centenas de anos, et voilá, volto a pôr-me de pé, rapidamente, em frente a uma bela ragazza loira que me elogia os dotes atléticos e que eu quase não vejo porque estou curvado sobre o meu peito, com uma dor estúpida e aguda. Pego no animal cor de laranja, a custo, pedalo devagar até ao escritório. A dor cresce, preciso mesmo de hospital. Seis horas mais tarde volto a casa, de bici, claro, tudo bem, nada partido, radiografia dixit, ficam apenas as dores e uma história para um exercício de escrita…

Acordei com menos dores, ainda débil. Levantei-me, osso por osso, respirando fundo. O iPod, ainda ligado, escorria um fio de musica que não se distinguia, abafada pelos bulício da rua. Tomei um duche, desarticulado, ensaboei-me com o resto de uma embalagem de champô, com a mulher fora e a empregada sabe-se lá quando virá, precisando de ir às compras. Fiado em que o esqueleto cumprisse a obrigação de se manter de pé saí, levei os ossos doridos a desentorpecer, pus os dentes a mastigar um brioche, e escaldei as goelas num capuchinho. Quando a cafeína me irrigou o cérebro, percebi que o telemóvel estava desligado. Merda! Descarreguei na bateria todas as culpas de um casamento desfeito. Quantas vezes me terá ela telefonado? E por que estúpida razão se teria o telefone desligado exatamente nesta noite? Quase nunca viajo, e tu, meu vadio, apanhas-me num congresso e desligas-me o telefone!

Tento ligar-lhe. Nada. Telefone desligado, deve estar no congresso, ligarei mais tarde, lembro-me de ter adormecido ouvindo Piazzola a contracompasso com um bip distante de bateria descarregada, grande desculpa…

Volto a casa. Mal ponho a chave na fechadura a porta abre-se. Está alguém em casa. Terá regressado mais cedo? Chamo-a. Nada. Em cima da cómoda está um bilhete, escrito por ela: Maria, ligaram do hospital, o meu marido teve um acidente de bicicleta e morreu, limpe a casa, volto assim que puder, compre gel de banho.