sábado, 19 de dezembro de 2009

A verdadeira história do pai natal

Há muitos, muitos anos, num tempo em que ainda não havia telefones móveis nem placas de banda larga, um rapaz das bandas de chaves, camionista, foi fazer um frete para uma empresa que fabricava umas bebidas refrigerantes, mesmo em dezembro, em pleno inverno, para refrigerar quem com este frio, vá-se lá saber, mas se me pagam, aqui vou eu. Saiu de chaves no camião, cheio de presuntos para deixar em espanha, que eles lá queriam começar a entrar nesse negócio e ainda estavam a ver como é que aquilo se fazia, para depois carregar os caixotes cheios da tal bebida refrigerante perto de valladolid, que era onde punham o gás na bebida, que era feita à base de água, açúcar e um gás tipo água das pedras mas doce. Como não era parvo, da carga dos presuntos ficou com três que deu como perdidos, até chegou a imaginar uma piada para contar aos amigos a propósito dos três presuntos, do género de dizer que era óbvio que se iam perder porque um porco só com três pernas tem tendência a andar mais para um lado e afastar-se dos outros, da vara, estão a perceber? E da carga das bebidas refrigerantes ainda abriu uma garrafa, que parecia que se estava a rir para ele, com um corpinho de gaja que até dava vontade de beber a acompanhar uma fatia de presunto mas não, não achou piada, porque o doce da bebida não cortava a gordura do presunto, nem ia bem com o salgado e as bolhinhas até o faziam engasgar-se e acabou por ficar com soluços durante quase todo o país basco. Nestas vidas de camionista passam-lhes muitas coisas pela cabeça, e vêem muito mundo, aprendem muito observando os hábitos e as tradições dos outros povos, desenvolvem perspectivas muito mais abertas do que aqueles que não viajam, ou que são apenas camionistas de fretes mais curtos, ou que fazem entregas só dentro da cidade ou numa região, ou mesmo aqueles que são da rodoviária nacional mas têm sempre a mesma volta, andam ali num vaivém para a frente e para trás mas é como se tivessem umas palas de lado, não vêem para além daquilo, e portanto, esta liberdade de vistas e de movimento deu ao nosso rapaz de chaves uma ideia: já que o frete era para zurich, iria passar o natal com um tio que vive em berna e que já não via desde miúdo, porque a vida é assim mesmo, a família é a família mas nem sempre se pode estar com todos e as pessoas fazem as suas escolhas de vida, umas emigram outras não, mas acabam sempre por arranjar a sua vidinha e vão-se as oportunidades de nos encontrarmos e de estarmos juntos quando queremos, mas o importante é que não se perca o contacto e que as pessoas se dêem bem e se tenham em boa consideração e pensem umas nas outras e estejam sempre presentes no coração nas alturas boas e nas alturas más. Dito e feito. Direção: grenoble, que é a maneira melhor de lá chegar a tempo de fazer o frete e passar a consoada com o tio e os miúdos e levar-lhes um presunto e umas garrafas desta bebida refrigerante para o verão, mas eles até são capazes de gostar de a beber agora porque uma vez numa carta lembro-me que disseram que também costumam comer gelados no inverno, mas eles têm casas aquecidas e isso tudo. Sim, que com este frio, não fosse o camião estar sempre a andar e mesmo quando está parado deixo o motor a funcionar que isto a gasóleo gasta pouco e sempre vai aquecendo. Este frio que o nosso rapaz de chaves já habituado a ele vem apanhando ao longo dos pirinéus e agora a entrar nos alpes é um frio de neve e de gelo, de grandes montanhas brancas, de um céu branco cinzento que nunca muda de cor, até as arvores parecem desenhadas com traços negros sublinhados de branco, e o ar tem sempre uns flocos de neve que voam em todas as direções, cobrindo tudo de inverno, e a única coisa quente naquele deserto frio é uma cabina de camião com umas fatias de presunto e umas fatias de pão na véspera de natal. Entrando cada vez mais nos alpes, o rapaz de chaves começa a preocupar-se com as horas, não queria chegar tarde a casa do tio, ainda queria estar um bocado com os rapazes antes do jantar. Aquelas subidas são terríveis, são o pesadelo recorrente dos camionistas, todo o camionista profissional que se preze tem este pesadelo de estar a puxar um camião carregado subindo, subindo, subindo uma rampa interminável, fazendo das bielas coração, queimando diesel a golfos para fazer subir o camião, até que se acorda e pronto. Mas, neste caso, não. Era mesmo uma subida real, e o camião sentia-se cada vez mais cansado, mais velho, mais a precisar de umas férias que ainda não tinha tido tempo de fazer. E pif! Pifou. E pronto, aconteceu a desgraça que estão mesmo a adivinhar. Fazendo de uma história longa um conto, quando a policia da autoestrada chegou ao local já no dia de natal encontrou um corpo quase gelado, dentro de um camião a que tinha acabado o gasóleo durante a noite. Quando chegou o jornalista da imprensa local, já só viu o rapaz de chaves deitado, coberto com um casaco da cruz vermelha com um capuz orlado de um pelo branco que lhe dava a impressão estranha de já ser um velho de barbas hirsutas grisalhas, e quando o levaram para o hospital tiveram de lhe tirar de cima da barriga um presunto de chaves a que ele se tinha agarrado durante a noite para se aquecer. Quando a notícia chegou ao chief executive officer da empresa que faz a bebida refrigerante, ele, imbuído de um forte espírito de responsabilidade social, chamou a agência de marketing, e disse: «quero que este momento seja um marco na história da empresa, façam-me aparecer todos os anos no natal uma campanha publicitária em todo o mundo que seja uma sincera homenagem a este rapaz de chaves…» e é esta a verdadeira história do pai natal.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Vidas saudáveis

No outro dia fui passar o fim-de-semana a casa da Isabel e do Pedro. Conheço a Isabel há mais de vinte anos, fomos colegas de liceu, e conheço o Pedro desde que casaram, há mais de dez. Temos mantido contacto assíduo e gostamos de estar juntos mas ainda não os tinha visitado desde que decidiram mudar-se para o campo. Jantámos, passámos um bom bocado na conversa, e falaram com muito entusiasmo da sua mudança, da qualidade de vida que ganharam, e do sossego que agora têm. Pareceram-me bastante mudados, sobretudo muito mais calmos do que quando viviam na cidade. O campo estava a fazer-lhes bem mas eu tive de admitir que ainda precisava muito da vida e do bulício da cidade, gostava do campo aos fins-de-semana, quando podia, ou quando me apetecia, mas o dia-a-dia tem de ser na cidade. Acabámos de jantar cedo, mais uma vantagem da vida no campo, deitar cedo e cedo erguer… Ficámos ainda a conversar, bebendo um licor de ervas que eles próprios fizeram, ouvindo os barulhos da noite do campo: os cães a uivar, os mochos piando, os carros ao longe na autoestrada. Subitamente, o Pedro levantou-se, e beijou-me, despedindo-se «Ana, vemo-nos amanhã, estou cansado, vou dormir,» e saiu de casa. Eu fiquei sem saber o que dizer. Olhei para a minha amiga Isabel, de olhos abertos, a ver se vinha explicação. Ela nada. Perguntei «que se passa? Porque saiu ele? Não dorme em casa?» A Isabel apercebeu-se finalmente do meu olhar espantado e sossegou-me: «Não te preocupes, querida. Desde que viemos viver para o campo que o Pedro gosta de se deitar com as galinhas. Eu não me importo e, por outro lado, tem vantagens: traz-me ovos fresquinhos pela manhã…»

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Feliz Natal

Há um par de minutos que está ali, estaticamente, a olhar para o céu. Teve um dia terrível, tudo a correr mal, e não via a hora de ir para casa. Desde o almoço que lhe apetecia ir embora, passar na florista para comprar um ramo de rosas brancas, de que o seu anjo tanto gostava, e ir para casa, talvez saírem para beber um aperitivo e jantar fora, reviverem aqueles dias de amor celestial que tinham vivido logo depois do casamento, havia menos de dois meses. De cotovelo apoiado na secretária e o queixo apoiado na mão, deixou-se estar um bocado a olhar para a fotografia no desktop do computador, a admirar-lhe a pele branca, fina, sensual, que lhe apeteceu percorrer naquele momento; e com a seta do cursor, foi-lhe desenhando o contorno do rosto, distraidamente, vezes sem conta, até se aperceber de que estava a fazer uma figura ridícula de recém-casado. Compôs-se, olhou em volta, e suspirou. Que vontade de ir para casa… De repente, o telefone tocou: reconheceu imediatamente o número. Era o seu amor tão desejado. Atendeu, com um grande sorriso e uma voz melada de paixão. Namoraram. Ficou no ar a promessa de um jantar romântico e uma noite especial. Mal pousou o auscultador do telefone, decidiu-se. Vou-me embora. Fechou o outlook, fez shut down, e voou para casa.

Abriu a porta devagar, o ambiente estava preparado para ser íntimo, lareira acesa, a luz fraca e quente, a mesa posta para dois, velas, os talheres de prata da tia… O bip do microondas na cozinha anunciou um timing perfeito. O seu anjo apareceu subitamente num vestido branco, curto, quase transparente. Daí para a frente, tudo aconteceu como ambos aspiravam. Jantaram, trocando carícias, desejo, paixão. Despiram-se ainda na sala, rapidamente, como se fosse a primeira vez, respiraram o mesmo ar, sentiram os mesmos perfumes, percorreram-se cruzando olhares de volúpia. No momento certo, voaram para o quarto, deitaram-se e abraçaram-se: «Boa-noite, meu anjo, adoro-te.» «Boa noite para ti também. Dorme bem.» Embrulharam-se nas asas e adormeceram: os anjos não têm sexo…

 

 

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Acção de formação

A personagem principal desta história é um jovem inteligente e criativo, um pouco envergonhado, e de poucas palavras. Foi admitido há pouco tempo numa grande empresa, devido ao seu currículo e boas referências, e tem conseguido fazer um trabalho muito apreciado mas não sem algumas dificuldades em aprender a lidar com o ambiente corporativo. Os truques e as manhas dos mais experientes não lhe são familiares, e a sua inexperiência e ingenuidade não deixam de se surpreender com o que os seus colegas e chefes são capazes de fazer e de dizer para se coroarem com os louros do trabalho alheio. Disposto a investir o esforço necessário para continuar a fazer um bom trabalho e obter o justo reconhecimento, a personagem principal desta história contribui, dia após dia, com o que tem de melhor, renegando as tramas corporativas. Recentemente, foi bater à porta do seu chefe, para explicar como tinha estado a elaborar uma ideia que poderia trazer grandes benefícios para a empresa. O chefe, do lado de dentro do gabinete, mandou-o avançar, sem levantar os olhos dos papéis: «Meu caro: vejo que está já perfeitamente adaptado à empresa e à maneira como aqui fazemos as coisas. Deixe-me só sugerir-lhe que, dado que gosto de dar aos meus colaboradores toda a atenção que merecem, da próxima vez que queira partilhar alguma coisa comigo, avise a minha assistente com alguma antecedência… assim, estaremos muito mais à vontade e teremos todo o tempo do mundo para falarmos das nossas preocupações e das nossas ideias. Aproveito também para lhe dar os parabéns pela prontidão dos seus relatórios. Não é que eu queira andar sempre em cima das pessoas a saber o que elas fazem, mas é importante para a empresa que eu esteja atento a tudo o que se passa com os meus colaboradores e esteja disposto a ouvi-los e dar-lhes os meios de que eles necessitam para fazerem o seu trabalho. Diga lá, sou todo ouvidos…» A personagem principal desta história, ainda a fazer que sim com a cabeça ao ritmo das recomendações do chefe, e ainda de pé, sentou-se na cadeira à frente da secretária do chefe. Encheu o peito para começar a falar, mas o chefe interrompeu: «Espere um momento, não se esqueça do que vai dizer…» Levantou o auscultador do telefone, e disse: «Traga-me um café. Obrigado». A personagem principal desta história tentou não se esquecer do que ia dizer, mas não conseguiu deixar de se distrair com a interrupção, e pôs-se a pensar na ironia do pedido do chefe: «Traga-me um café…», como se a ordem das coisas se tivesse invertido e o chefe estivesse a fazer uma exclamação acerca do seu estado, isto é, como se o chefe estivesse dentro de uma chávena que se aproximava da boca escancarada de um café (que poderia ser um café liquido ou um café tipo A Brasileira do Chiado…) e se desse conta de que iria ser tragado. Mas, por outro lado, a situação não deveria ser do seu desagrado, porque, a seguir, agradecia: «obrigado». Mas, ainda por outro lado, este «obrigado» parecia pouco espontâneo e talvez ele estivesse de facto a dizer que o tragava um café obrigado, isto é, como se tivessem obrigado um café a traga-lo. Enfim… «Então? Que tinha para me dizer? Não se esqueça de que sou um homem ocupado! Diga lá, vá…» A personagem principal desta história afastou aqueles pensamentos parvos e tratou de se concentrar no que tinha para contar ao chefe. Mas, subitamente, o chefe interrompeu-o mesmo antes de ter começado: «Desculpe, que educação a minha… nem sequer lhe perguntei: que quer que peça para si? Café, água, um chá?» A personagem principal desta história hesitou, apetecia-lhe uma coca-cola… mas lembrou-se daquele vídeo da internet acerca da mistura da coca-cola com os mentos e decidiu que ainda precisaria de algum tempo para se adaptar à ideia. Talvez uma água… Entretanto, a Anabela entrou no gabinete, pousou um café, e disse: «tomei a liberdade de trazer dois…» e deixou outro café em frente à personagem principal desta história. «Aqui tem,» disse o chefe, «ninguém como a Anabela para ajudar a tomar decisões. Rapaz: temos de trabalhar a sua auto-estima. Na minha equipa gosto de pessoas assertivas, de decisões rápidas, não se esqueça. Vamos encontrar um programa de formação à sua medida, para trabalhar esse aspecto.» E, antes que a Anabela saísse: «Anabela, veja-me o programa daqueles tipos que estiveram cá a fazer uma formação o ano passado, aqueles que trabalharam o Benjamim quando a gente o mandou para as vendas, lembra-se?» A Anabela fez que sim, e saiu. O chefe insistiu, depois de ter tragado o café num só gole: «Então? Diga.» A personagem principal desta história percebeu imediatamente que não iria ter oportunidade de beber o café que a Anabela lhe tinha posto à frente, e tratou de tentar concentrar-se o melhor que pode a escolher as palavras para ser assertivo, mudou até ligeiramente a expressão, de forma a que ficasse com um olhar mais agressivo, a condizer com a assertividade do discurso que estava a preparar, mas sem querer parecer demasiado duro, para não criar um mal entendido. Afinal, estava ali para apresentar uma ideia que lhe parecia boa e não queria que a ideia fosse liquidada à partida por ele não ter sabido apresentá-la ou por o chefe se zangar com ele por assumir uma expressão desnecessariamente dura. Na universidade, tinham falado bastante sobre isso, de como as ideias não chegam, de como é necessário vestir uma boa ideia de forma a fazê-la passar, ser bem compreendida, portanto isso não era novidade para ele. Aqui vai… Subitamente, o telefone toca, o chefe atende, põe um ar sério de respeito militar, levanta-se, e diz «sim senhor engenheiro, sim senhor, imediatamente,» pousa o telefone com um longo suspiro que lhe fez escorrer fato abaixo o momentâneo e súbito ar de respeito militar: «Rapaz: tenho de ir imediatamente falar com o senhor engenheiro sobre um assunto da maior importância. Peço-lhe que me faça um relatório breve e conciso acerca do nosso assunto, das ideias que estivemos agora a discutir, ok? Não se esqueça: os seus relatórios são da maior importância para a equipa. Depois, peço à Anabela para o chamar, ok? Obrigado por ter vindo falar comigo.» A personagem principal desta história levantou-se, saiu do gabinete, e foi à máquina buscar um café. Ao fim da tarde enviou ao chefe um relatório sucinto apresentando a sua ideia. Uma semana depois, o chefe mandou-lhe um email: «Analisei o relatório que me enviou na sequência da nossa reunião da semana passada. Na primeira oportunidade, falarei consigo. Fale com a Anabela para combinar as datas para a sua acção de formação na área da comunicação. Falta-lhe assertividade e capacidade de comunicar, temos de trabalhar nisto, ok? Não se esqueça de que terá de ser você a apresentar os pormenores da ideia ao senhor engenheiro» Ficou radiante. Parecia que o chefe tinha gostado da ideia e estava a querer investir no seu futuro propondo-lhe já uma acção de formação e dando-lhe uma oportunidade de brilhar dentro da empresa. Passados alguns dias, recebeu novo email: «Falei com o senhor engenheiro acerca da nossa ideia. Ele ficou entusiasmado e vai libertar uma verba do orçamento para a desenvolvermos. Já fez a formação que lhe propus? Gostaria que fosse você a apresentar o plano de desenvolvimento a toda a empresa» A personagem principal desta história foi imediatamente falar com a Anabela, porque não queria que o chefe achasse que estava ser relutante ou a desperdiçar uma oportunidade. A Anabela, quando o viu chegar disse-lhe: «Já sei que está aqui para combinarmos as datas da sua acção de formação. Vou fazer uma agenda que incluirá outros colaboradores no mesmo programa, e depois digo-lhe quais são os dias, ok?» Assim ficou. Passadas algumas semanas recebeu um email da Anabela com as datas e um outro email do chefe: «Vitória! Dentro de poucos dias faremos a apresentação do nosso assunto ao board e conto consigo. Não fale disto a ninguém, ok? Que tal correu o seu programa de formação? Mande-me um relatório, eu sei que os tipos são bons mas quero ouvir a sua opinião, ok?» A personagem principal desta história consultou a agenda, e confirmou a disponibilidade da data para a acção de formação, que seria daí a poucos dias. No escritório parecia haver uma excitação especial, que ia crescendo de dia para dia. Os colaboradores mais antigos passavam em direcção ao gabinete do chefe e regressavam sorridentes, comentando como o momento era importante para a empresa. A personagem principal desta história tinha a certeza de que estavam a falar da sua ideia, e do sucesso que ela teria, mas não queria abordar o assunto com ninguém, para não trair a confiança do chefe.

Quando finalmente passou um dia inteiro na acção de formação sobre comunicação e assertividade, que lhe pareceu um bocado exagerada na parte da assertividade, pelos gritos e pelo falar alto, a que ele não estava habituado, nem a sua mãe acharia uma coisa boa, voltou ao escritório e fez o relatório que lhe tinha sido pedido pelo chefe, tentando identificar todos os aspectos positivos e sendo o mais objectivo possível. Pouco depois de o enviar, recebeu também por email a resposta do chefe: «Lamento que não tenha podido aqui estar para a apresentação da nossa ideia ao board. No entanto, fico contente por ter achado o programa em que o inscrevi interessante e útil e isso será muito mais importante para a sua carreira do que uma simples apresentação. Fico contente por se ter integrado perfeitamente nesta equipa e conto consigo para me apoiar em ideias futuras.»

 

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Capítulo 3, parte 2

António gostava dos caracóis de Laura, e ficou a pensar neles, ouvindo uma música no rádio. Apeteceu-lhe percorre-los com a mão, ao ritmo daquela música, e senti-los nos dedos, enquanto ela continuava a olhar a estrada interminável. Ela disse que ia trovejar. Sentia a eletricidade no corpo, sentia que a fibra do vestido carregada de electrões lhe fazia um formigueiro. Puxou o vestido curto para cima, como a querer libertar-se de um desconforto súbito, como se o vestido a queimasse, e passou as mãos nas coxas e nas nádegas, devagar. «Vai trovejar». António concordou, com o olhar correndo os pespontos sinuosos do vestido de Laura. Apeteceu-lhe parar, transformar os caracóis num brinquedo, dizer-lhe que gostava daquele vestido curto, subir-lho devagar com as próprias mãos. Fez tudo isso sem lho dizer, beijou-a, mirou-lhe o doce balançar dos seios, deixou-se embriagar pelo seu hálito, sem lho dizer. Já tinham andado mais de mil quilómetros e talvez fosse tempo de parar. Ouviram trovejar ao longe.

 

domingo, 13 de dezembro de 2009

Capítulo 3, Parte 1

Entraram no carro, sentaram-se, e ambos pensaram que aquela viagem não fazia sentido. E, à medida que a estrada se desenrolava, menos sentido parecia fazer. Uma eterna reta, como uma suspensão do tempo, interminável, à sua frente. De princípio, ainda diziam um ao outro, entre risos, que a reta estaria a acabar, que logo viria uma sequência interminável de curvas, como os inevitáveis dias de chuva após dias consecutivos de bom tempo. Mas não. A reta continuou, e eles também. Imaginaram, iludidos pela paisagem, que estavam girando sobre a lua, e que daí a pouco iriam ver o seu próprio rasto, e voltar a passar por cima dele, vezes e vezes sem conta, cumprindo várias circumnavegações. Mas não. A poeira do chão continuava intacta, sem marcas, sem passado, sem princípio, nem fim. A paixão que tinham um pelo outro fazia-os, talvez, acreditar que tudo era normal, e que aquela poeira fina e lunar se dissiparia a qualquer momento para deixar ver uma vegetação primaveril. A poeira não desistia, porém, e deixava-se ficar atrás deles, suspensa. A monotonia da paisagem dissipava-se apenas ligeiramente quando as sombras de nuvens dispersas espalhadas pelo chão acalmavam a luz. Mas, nem árvores cresciam ao longo daquela imensa estrada monótona, reta, e infindável; apenas uns postes de eletricidade, que ao início pareciam postes normais, mas que não eram. Por um bocado, ficaram a matutar nos postes, sem perceberem o que tinham de anormal, mas convenceram-se de que pareciam perseguir as nuvens.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Capítulo 2, Parte 3

Começou a chover. Deitei-me sobre o sofá, a descansar.

Bateram à porta, fui abrir. Briolanja entrou na sala, suspensa no meu olhar, coberta com um lençol. As tranças vermelhas jorravam do branco. Aproximou-se devagar, olhou-me, trouxe o corpo até ao meu. Senti-lhe a nudez fresca, sob o lençol. Amarrado às tranças senti-lhe o fulgor da respiração. Os mamilos tocaram-me, através do tecido branco. Ficamos ali um bocado, como dantes. Passou o lençol à minha volta, e perdi-me no tempo a percorrer-lhe as tranças de fogo.

Acordei com o telefone a tocar. Não atendi. Era Laura, com certeza. Briolanja ainda ali estava. Esperei que o telefone tocasse novamente e atendi. Era Laura. Tinha parado de chover, o arcoiris riscou o céu, sobre a casa dos gerânios e das sardinheiras. O fogo das tranças de Briolanja extinguiu-se, e todas as espirais pararam de rodar. Quando me levantei, o marcador azul caiu no chão, aos meus pés. Encontrei-te!

 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Capítulo 2, Parte 2

As janelas sem cortinas revelam que já não há vida própria nesta sala, já não se requer privacidade, tudo o que aqui se passar a partir de hoje não interessa a ninguém. Já aqui não moro, sou apenas o narrador de uma história que muda de capítulo. A rua toda pode entrar pela sala, os olhos não se detêm no limite das paredes. Experimentei passar para além do limite. Olhei para além da janela, ultrapassando o que eu tinha definido como o meu próprio espaço. Aquela casa, em frente, com os gerânios e as sardinheiras no canteiro. Agora que as janelas cumprem finalmente o papel de serem uma abertura para fora, apercebo-me de que sempre ali esteve, afinal. Levantei-me, e fui à janela. A casa de Briolanja, a professora de liceu que fazia orais nos dias quentes de Julho. Briolanja e as suas tranças ruivas, belas espirais de fogo. Tantas vezes envolto naquelas tranças.

 

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Capítulo 2, Parte 1

Por toda a casa um imenso vazio de caixas cheias. Um mundo que se divide entre as coisas que ficam sufocadas debaixo de lençóis brancos e as coisas que partem dentro de caixas com endereço escrito (onde pus eu o marcador azul?). Ou talvez sejam dois mundos que seguem uma trajectória diferente, duas elipses, ou duas espirais com sentidos de rotação inversos, positivo contra negativo, horário contra directo. E eu sento-me numa caixa amordaçada por fita cola (tem escrito “livros”), com a certeza de que tomei a decisão certa, já cansado de passar o dia a empacotar os melhores pedaços da minha vida. Alguns ficarão. O peixe vermelho, ofereci-o à cara redonda que todas as manhãs a caminho da escola se vinha esparramar na janela da cozinha, do outro lado do aquário (os peixes vermelhos detestam mudanças, tanto tempo andam à volta do aquário que acabam por se tornar animais territoriais, como um cão de guarda que todos os dias dá a volta à quinta). Queria levar outros pedaços, recordações, coisas que senti, coisas que vi, ideias que tive ao folhear um livro, e que me mudaram a vida. Mas não sei onde estão. Alguns pedaços voltarão a aparecer quando voltar a abrir estas caixas, no destino. Outros ficarão, gravados nos riscos do soalho, ou na moldura escurecida de pó à volta dos quadros. Agora, ao olhar para as paredes, percebo como são importantes os quadros, porque me recordo de sempre os olhar sem me dar conta de que lá estavam. Agora, que a única coisa que se vê é a alma deles, delineada numa sombra de pó… E agora, que o branco dos lençóis e das paredes vazias me devolve toda a luz e os sons, num eco que anuncia uma partida.