Por toda a casa um imenso vazio de caixas cheias. Um mundo que se divide entre as coisas que ficam sufocadas debaixo de lençóis brancos e as coisas que partem dentro de caixas com endereço escrito (onde pus eu o marcador azul?). Ou talvez sejam dois mundos que seguem uma trajectória diferente, duas elipses, ou duas espirais com sentidos de rotação inversos, positivo contra negativo, horário contra directo. E eu sento-me numa caixa amordaçada por fita cola (tem escrito “livros”), com a certeza de que tomei a decisão certa, já cansado de passar o dia a empacotar os melhores pedaços da minha vida. Alguns ficarão. O peixe vermelho, ofereci-o à cara redonda que todas as manhãs a caminho da escola se vinha esparramar na janela da cozinha, do outro lado do aquário (os peixes vermelhos detestam mudanças, tanto tempo andam à volta do aquário que acabam por se tornar animais territoriais, como um cão de guarda que todos os dias dá a volta à quinta). Queria levar outros pedaços, recordações, coisas que senti, coisas que vi, ideias que tive ao folhear um livro, e que me mudaram a vida. Mas não sei onde estão. Alguns pedaços voltarão a aparecer quando voltar a abrir estas caixas, no destino. Outros ficarão, gravados nos riscos do soalho, ou na moldura escurecida de pó à volta dos quadros. Agora, ao olhar para as paredes, percebo como são importantes os quadros, porque me recordo de sempre os olhar sem me dar conta de que lá estavam. Agora, que a única coisa que se vê é a alma deles, delineada numa sombra de pó… E agora, que o branco dos lençóis e das paredes vazias me devolve toda a luz e os sons, num eco que anuncia uma partida.
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
Capítulo 2, Parte 1
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