Há muitos, muitos anos, num tempo em que ainda não havia telefones móveis nem placas de banda larga, um rapaz das bandas de chaves, camionista, foi fazer um frete para uma empresa que fabricava umas bebidas refrigerantes, mesmo em dezembro, em pleno inverno, para refrigerar quem com este frio, vá-se lá saber, mas se me pagam, aqui vou eu. Saiu de chaves no camião, cheio de presuntos para deixar em espanha, que eles lá queriam começar a entrar nesse negócio e ainda estavam a ver como é que aquilo se fazia, para depois carregar os caixotes cheios da tal bebida refrigerante perto de valladolid, que era onde punham o gás na bebida, que era feita à base de água, açúcar e um gás tipo água das pedras mas doce. Como não era parvo, da carga dos presuntos ficou com três que deu como perdidos, até chegou a imaginar uma piada para contar aos amigos a propósito dos três presuntos, do género de dizer que era óbvio que se iam perder porque um porco só com três pernas tem tendência a andar mais para um lado e afastar-se dos outros, da vara, estão a perceber? E da carga das bebidas refrigerantes ainda abriu uma garrafa, que parecia que se estava a rir para ele, com um corpinho de gaja que até dava vontade de beber a acompanhar uma fatia de presunto mas não, não achou piada, porque o doce da bebida não cortava a gordura do presunto, nem ia bem com o salgado e as bolhinhas até o faziam engasgar-se e acabou por ficar com soluços durante quase todo o país basco. Nestas vidas de camionista passam-lhes muitas coisas pela cabeça, e vêem muito mundo, aprendem muito observando os hábitos e as tradições dos outros povos, desenvolvem perspectivas muito mais abertas do que aqueles que não viajam, ou que são apenas camionistas de fretes mais curtos, ou que fazem entregas só dentro da cidade ou numa região, ou mesmo aqueles que são da rodoviária nacional mas têm sempre a mesma volta, andam ali num vaivém para a frente e para trás mas é como se tivessem umas palas de lado, não vêem para além daquilo, e portanto, esta liberdade de vistas e de movimento deu ao nosso rapaz de chaves uma ideia: já que o frete era para zurich, iria passar o natal com um tio que vive em berna e que já não via desde miúdo, porque a vida é assim mesmo, a família é a família mas nem sempre se pode estar com todos e as pessoas fazem as suas escolhas de vida, umas emigram outras não, mas acabam sempre por arranjar a sua vidinha e vão-se as oportunidades de nos encontrarmos e de estarmos juntos quando queremos, mas o importante é que não se perca o contacto e que as pessoas se dêem bem e se tenham em boa consideração e pensem umas nas outras e estejam sempre presentes no coração nas alturas boas e nas alturas más. Dito e feito. Direção: grenoble, que é a maneira melhor de lá chegar a tempo de fazer o frete e passar a consoada com o tio e os miúdos e levar-lhes um presunto e umas garrafas desta bebida refrigerante para o verão, mas eles até são capazes de gostar de a beber agora porque uma vez numa carta lembro-me que disseram que também costumam comer gelados no inverno, mas eles têm casas aquecidas e isso tudo. Sim, que com este frio, não fosse o camião estar sempre a andar e mesmo quando está parado deixo o motor a funcionar que isto a gasóleo gasta pouco e sempre vai aquecendo. Este frio que o nosso rapaz de chaves já habituado a ele vem apanhando ao longo dos pirinéus e agora a entrar nos alpes é um frio de neve e de gelo, de grandes montanhas brancas, de um céu branco cinzento que nunca muda de cor, até as arvores parecem desenhadas com traços negros sublinhados de branco, e o ar tem sempre uns flocos de neve que voam em todas as direções, cobrindo tudo de inverno, e a única coisa quente naquele deserto frio é uma cabina de camião com umas fatias de presunto e umas fatias de pão na véspera de natal. Entrando cada vez mais nos alpes, o rapaz de chaves começa a preocupar-se com as horas, não queria chegar tarde a casa do tio, ainda queria estar um bocado com os rapazes antes do jantar. Aquelas subidas são terríveis, são o pesadelo recorrente dos camionistas, todo o camionista profissional que se preze tem este pesadelo de estar a puxar um camião carregado subindo, subindo, subindo uma rampa interminável, fazendo das bielas coração, queimando diesel a golfos para fazer subir o camião, até que se acorda e pronto. Mas, neste caso, não. Era mesmo uma subida real, e o camião sentia-se cada vez mais cansado, mais velho, mais a precisar de umas férias que ainda não tinha tido tempo de fazer. E pif! Pifou. E pronto, aconteceu a desgraça que estão mesmo a adivinhar. Fazendo de uma história longa um conto, quando a policia da autoestrada chegou ao local já no dia de natal encontrou um corpo quase gelado, dentro de um camião a que tinha acabado o gasóleo durante a noite. Quando chegou o jornalista da imprensa local, já só viu o rapaz de chaves deitado, coberto com um casaco da cruz vermelha com um capuz orlado de um pelo branco que lhe dava a impressão estranha de já ser um velho de barbas hirsutas grisalhas, e quando o levaram para o hospital tiveram de lhe tirar de cima da barriga um presunto de chaves a que ele se tinha agarrado durante a noite para se aquecer. Quando a notícia chegou ao chief executive officer da empresa que faz a bebida refrigerante, ele, imbuído de um forte espírito de responsabilidade social, chamou a agência de marketing, e disse: «quero que este momento seja um marco na história da empresa, façam-me aparecer todos os anos no natal uma campanha publicitária em todo o mundo que seja uma sincera homenagem a este rapaz de chaves…» e é esta a verdadeira história do pai natal.
sábado, 19 de dezembro de 2009
A verdadeira história do pai natal
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