sábado, 25 de abril de 2009

Lisboa

No meio do rio, contemplo a cidade, semi-cerrando os olhos, como um pintor. Para ver os detalhes, aperto a luz entre as pálpebras: ela cai, sem dó, sobre o casario, traçando linhas, esculpindo formas, espalhando cores; brancos, sobretudo, porque a luz é insuportavelmente branca; uma miríade infindável de brancos. Mais tarde, quando o sol libertar as colinas, e as casas se libertarem do alvo esmalte que as cobre, outras cores se revelarão…

A luz é excessiva, supérflua, maior do que a cidade precisa. Uma auréola de santo, um clarão de milagre, um brilho de ouro, todo este excesso de luz, que se foi incrustando na cidade durante séculos, envolve as colinas, as casas, as igrejas, os palácios, os jardins, as árvores, os faróis, os miradouros, os armazéns, os ministérios, o castelo.

Um tranquilo céu azul pousa sobre esta brancura, contendo-a para que não transvase, como uma coberta sobre a massa que dará o pão. Traços pós-modernistas esbracejam no azul, como que tentando libertar a cidade da luz que a oprime; mas, também esses já se deixam sedimentar nesta teia de luz… maravilhosa cumplicidade, o azul e o branco, como num azulejo da Madre de Deus.

Em harmonia com os sons que a brisa sopra no mastro e no cordame – e que apenas os marinheiros reconhecem como música -- escuto o batuque sincopado e hipnótico dos carros rolando na ponte, e dos elétricos rolando ferro na baixa. São ritmos que vêm de outros tempos, e de outros continentes— de quando os navios se abraçavam a este cais, com risos e lágrimas, para receber e largar gentes (agora, os navios deixam no cais, arrumadinhos, os carrinhos “matchbox” com que brinquei em miúdo; que salpicam a margem de cores metalizadas, com garantia anti-corrosão, e outros extras).

As gentes ainda chegam e partem, nos cacilheiros: viajam entre a margem sul e a margem-sol, numa viagem talvez menos dolorosa do que as de outrora… ou talvez não; não há sorrisos, nem lágrimas; ninguém à espera.

Os cacilheiros, na ânsia de chegar e voltar a partir, atiram-se sobre a cidade, deixando cicatrizes nas pedras do cais, marcando-as, atirando-lhes as gentes: os homens e as mulheres que desembarcam somem-se, dissolvem-se na luz; materializar-se-ão mais tarde, na penumbra, cansados e tristes.

Não sei quando voltarei a ver esta luz; mas, sei que aqui estará, para sempre, à minha espera.

O vento vira, a vela bate, viro de bordo, volto as costas à cidade, aproo ao vento, descanso os olhos no horizonte, e parto.

Milano, 25 de Abril de 2009

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