segunda-feira, 31 de maio de 2010

Não há moral

Tínhamos reservado uma casa para ficar, na costa alentejana, mas não gostámos do sítio, e cancelámos. Acabámos por ir visitar os meus cunhados a Odeceixe e almoçámos com eles, sem nos preocuparmos com o que iríamos fazer a seguir nem onde iríamos ficar. O almoço acabou tarde, porque tive a despropositada ideia de comprar uns mexilhões e pedir ao Manel – o meu cunhado – que os limpasse (ele recusou olhar para os mexilhões como um escolho que se mete na frigideira, com alho, azeite, tomate, e algas, e decidiu abordá-los um a um, transformando-os em pequenas joias marinhas de um belo nacarado azul negro, resplendentes e luminosas – coisa que leva o seu tempo). Depois do almoço, perguntámos a um homem empoeirado que varria uns degraus se sabia de uma casa para alugar. «Esta», disse ele, «acabei agora mesmo de a construir e ainda não a aluguei.» E assim ficámos uns dias em Odeceixe. Numa das noites, o meu sobrinho Gonçalo quis ir dormir lá a casa e eu vi nisso uma oportunidade de aumentar o meu público de histórias para dormir – eu costumava contar histórias à minha filha, e as minhas histórias tinham um enorme sucesso, eram coisa de dez a vinte minutos de narrativa, com umas personagens mais ou menos complicadas, tipo cavalos alados que saltavam valados, pardais parvos que sobrevoam prados pardos, papas de roma com sapatos prada numa almofada encarnada, e por aí adiante (e eu nunca gostei muito de explicar tudo às crianças porque acho que elas têm muito tempo para aprender…). Ia eu já muito avançado no desenvolvimento, com todas as personagens já metidas no enredo, quase, quase, a chegar a um clímax, com a minha filha a dormir o segundo sono, ainda o Gonçalo estava de olhos abertos, parados, miudinhos, a olhar para mim. Eu, com receio de que a minha veia literária terminasse antes que o Gonçalo fechasse os olhos, decidi dar um empurrãozinho: «Gonçalo: fecha os olhos, para ouvires melhor a história…» O miúdo fechou os olhos. Continuei a narrativa, embrulhando um bocadinho as descrições. Daí a pouco, o puto abre os olhos, e pergunta: «tio, tio, quando é que entra a bruxa?» Suspendi tudo. Amaldiçoei o meu cunhado e a warner brothers por transformarem todas as histórias de crianças em lutas de transformers com bruxas más (reconhecendo que as personagens deles são mais apelativas do que as minhas, no entanto…) e disse: «Gonçalo: nesta história não há bruxas!» O Gonçalo conformou-se e voltou a fechar os olhos. A partir daí, compliquei um bocadinho a ação, para ver se o sono do puto vinha mais depressa, espiralei a narrativa, abrandei o ritmo da história... Triunfo! Preparo-me para o desfecho, o miúdo já está há um bocado sem abrir os olhos, missão cumprida: mais duas crianças embaladas por uma história de sucesso; o Gonçalo, subitamente, abre os olhos, e pergunta: «tio, tio, sabe com que é que sonhei no outro dia?» Suspirei, magoado por ter de aceitar ouvir a história do Gonçalo a meio da minha própria história, logo naquela parte que eu tinha definido como desfecho, mas enchi-me de paciência didática e disse: «Não, Gonçalo, conta lá…»

E o puto contou: «Sonhei que estava a ajudar o lobo mau a apanhar os três porquinhos.»

Não há moral.

2 comentários:

sofiab disse...

Adoro esse teu sobrinho! Ahahahaha!

Unknown disse...

Há que fazer um refresh das personagens e enredos das estórias de adormecer para os sobrinhos do futuro!
Adorei!