domingo, 29 de novembro de 2009

Capítulo 1, Parte 2

Laura teve a impressão de que alguém os seguia. O instinto transformou o desconforto num bater de coração mais forte. Vinha gente. «António, tenho medo!» Apurou os sentidos, sentia-lhes o peso dos passos – aproximavam-se. Um grupo de pessoas que veio de qualquer lado chegou-se-lhes muito perto. De súbito, sentiu algo inexplicável, olhou para trás, por cima do ombro de António, e viu um rosto grotesco, enorme, uma máscara horrenda, salpicada de manchas, como cicatrizes de queimaduras profundas. Desviou o olhar, agarrou o braço de António. António estacou entre a figura grotesca e o corpo belo e trémulo de Laura. Abraçou-a. «Espera!» O monstro empurrou-os, ameaçador, como se não houvesse mais por onde passar. Afastou-se. O grupo passou, mudo, sem expressão, mas deixou no ar um cheiro acre de perigo, e de ameaça velada.

 

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Capítulo 1, Parte 1

Desenleavam um fio de descobertas sem fim, como da primeira vez que se sobe à montanha para ver os vales e se ouve o eco da própria voz, ou que se vê o mar quebrando-se em espuma nas fragas sob as asas das gaivotas, ou que se entra numa casa abandonada, que ali estava há anos, cheia de segredos antigos. Tinham iniciado uma viagem sem guia, nem intérprete, onde o irreal permanece inexplicável, como um sonho de criança que nos acompanha durante toda a vida. Cresceu-lhes a impressão de que é o tempo que modela tudo: as casas, os caminhos, todas as pedras, as portas e as janelas, as vidas. Não há mão de homem, o que se vê é apenas a poeira do tempo, como se as horas e os dias e os anos que passam se transformassem num sedimento, numa poeira, preenchendo todos os poros, como o fio de areia que cai de uma ampulheta. Esta poeira depositada é macia, fina, e uniforme, como a areia do deserto acarinhada pelo vento, como uma película de neve de manhã ao acordar, ou como uma pele jovem e luminosa que cobre um corpo revelando formas escondidas, voluptuosas, proibidas.

António e Laura viam um no outro a sua própria admiração. Geometrias estranhas reflectidas no rosto de cada um.

«Esta cidade, estes prédios, esta gente…».

«Que estranho, repara na cor da terra». Sentiam-se exploradores como os que descobriram palácios maias, ou pirâmides egípcias, ou jardins babilónicos.

«E este silêncio, esta mudez…». As pessoas não falavam, tampouco sorriam. Um silêncio frio de neve amplificava as mais pequenas expressões de pasmo (as cidades calam-se quando neva, tudo fica coberto por uma leve película de silêncio). Andavam pelos caminhos olhando à volta e olhando-se a eles próprios, por vezes, para confirmarem na troca de olhares o assombro do que viam.

 

 

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Tempestade de Verão II

As sombras dos prédios atiram-se com violência umas sobre as outras, sequência infinita de reflexos, nunca iguais, é como se um fotógrafo estivesse enlouquecendo e quisesse de repente capturar todos os ângulos possíveis da mesma paisagem, disparando flashes sobre flashes, como se o mundo estivesse no fim e fosse essencial fixar aquele momento, todas as paredes, todos os carros, todas as pessoas, todas as pedras de granizo enormes que caem, violentas, sobre tudo e sobre todos, como miúdos apedrejando sem dó os gatos num telhado de zinco.

Numa varanda, um homem vê na tempestade: os nazis que marcham para norte, e os aviões americanos e ingleses que vêm da Sicília para libertar Milão: os homens de deus, largando as bombas que o seu deus não sabe largar.

O barulho é ensurdecedor, diabólico, aterrador.

Num bar, um homem atrás dos vidros enrugados pela chuva olha para o céu e cada relâmpago ilumina-lhe o medo que deixou para trás, na Pérsia, de onde fugiu por amor e por amor à vida, buscando noites com irmãos sem gritos, sem terror. Como se pode fugir de um deus omnipresente?

A igreja de San Lorenzo perde um pouco da sua história, arrancado por uma de tantas bombas que caíram sobre Milão nessa noite. Também o Pallazzo Reale perde uma parte; as bombas não caem apenas sobre os comboios que abastecem os nazis; caem sobre as pessoas, as casas delas, e elas fogem, ou morrem.

Os nazis continuam a marcha para norte, sob as chispas do céu. Milão está a ser libertada, mas os outros também fogem, receando as bombas, sem comida, sem casa, sem história.

Buscava um céu sem sirenes, sem silvos de bomba, sem terror, sem ter de sair de casa de noite agarrado à mãe e aos irmãos, sem ter de pensar que um dia também ele faria a guerra. Chamava-se ArmAm: Esperança.

Agita o copo com sumo, faz tilintar o gelo, sob a luz de um relâmpago vê numa varanda a silhueta de um homem, que acha familiar. Também o outro olha para baixo e vê Esperança. Também julgou conhecê-lo: uma noite em que viu aqueles relâmpagos pela primeira vez, e conheceu um iraniano que fugia da guerra e que não tinha medo de tempestades.

 

Milão, 4 de Novembro de 2009.

MS