sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Tempestade de Verão II

As sombras dos prédios atiram-se com violência umas sobre as outras, sequência infinita de reflexos, nunca iguais, é como se um fotógrafo estivesse enlouquecendo e quisesse de repente capturar todos os ângulos possíveis da mesma paisagem, disparando flashes sobre flashes, como se o mundo estivesse no fim e fosse essencial fixar aquele momento, todas as paredes, todos os carros, todas as pessoas, todas as pedras de granizo enormes que caem, violentas, sobre tudo e sobre todos, como miúdos apedrejando sem dó os gatos num telhado de zinco.

Numa varanda, um homem vê na tempestade: os nazis que marcham para norte, e os aviões americanos e ingleses que vêm da Sicília para libertar Milão: os homens de deus, largando as bombas que o seu deus não sabe largar.

O barulho é ensurdecedor, diabólico, aterrador.

Num bar, um homem atrás dos vidros enrugados pela chuva olha para o céu e cada relâmpago ilumina-lhe o medo que deixou para trás, na Pérsia, de onde fugiu por amor e por amor à vida, buscando noites com irmãos sem gritos, sem terror. Como se pode fugir de um deus omnipresente?

A igreja de San Lorenzo perde um pouco da sua história, arrancado por uma de tantas bombas que caíram sobre Milão nessa noite. Também o Pallazzo Reale perde uma parte; as bombas não caem apenas sobre os comboios que abastecem os nazis; caem sobre as pessoas, as casas delas, e elas fogem, ou morrem.

Os nazis continuam a marcha para norte, sob as chispas do céu. Milão está a ser libertada, mas os outros também fogem, receando as bombas, sem comida, sem casa, sem história.

Buscava um céu sem sirenes, sem silvos de bomba, sem terror, sem ter de sair de casa de noite agarrado à mãe e aos irmãos, sem ter de pensar que um dia também ele faria a guerra. Chamava-se ArmAm: Esperança.

Agita o copo com sumo, faz tilintar o gelo, sob a luz de um relâmpago vê numa varanda a silhueta de um homem, que acha familiar. Também o outro olha para baixo e vê Esperança. Também julgou conhecê-lo: uma noite em que viu aqueles relâmpagos pela primeira vez, e conheceu um iraniano que fugia da guerra e que não tinha medo de tempestades.

 

Milão, 4 de Novembro de 2009.

MS

 

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