sábado, 15 de março de 2008

Zen e a Arte do Tiro com Arco

“Bom, parece-me que o mais difícil já passou”— disse eu um dia ao mestre, quando ele nos anunciava que iríamos começar com novos exercícios. “Aqui temos o costume de aconselhar a quem tem de caminhar cem milhas, que considere as noventa como sendo a metade— respondeu ele. Mas o objectivo desta nova etapa é o de atirar ao alvo.”
Até então, o destino da seta era um disco de palha assente num cavalete de madeira, em frente ao qual nos colocávamos, à distância equivalente ao comprimento de duas setas. O alvo, porém, está colocado a uma distância de sessenta metros, sobre uma elevação de areia de base larga, delimitada por três paredes e protegida, tal como o pavilhão onde fica o arqueiro, com uma cobertura de telha graciosamente inclinada. Os pavilhões estão ligados por altos tabiques que isolam do exterior o espaço onde se desenrolam acontecimentos tão singulares.
O mestre fez uma demonstração de tiro ao alvo. Ambas as setas acertaram no centro. Depois, convidou-nos a executar a cerimónia exactamente como antes, e permanecer em tensão máxima sem deixar que a presença do alvo nos causasse a mínima perturbação e esperar até que se desse o disparo. As nossas finas setas de bambu, embora partissem na direcção desejada, não chegavam a atingir, sequer, o monte de areia, e muito menos o alvo, cravando-se no chão à sua frente.
“As suas setas não atingem o alvo – observou o mestre – porque o seu alcance espiritual é limitado. Deve comportar-se como se o alvo estivesse a uma distância infinita. É um facto conhecido e comprovado pela experiência quotidiana entre nós, mestres arqueiros, que um bom arqueiro, munido de um arco de resistência média, atira mais longe que um arqueiro munido do arco mais forte, mas carente de espiritualidade. Logo, o resultado não depende do arco, mas sim da presença de espírito, vivacidade e atenção com que ele é manejado.”
(…)
Com o decorrer do tempo foram acontecendo, de vez em quando, mais alguns tiros que atingiam o alvo, embora acompanhados de muitos tiros falhados. Mas, ao menor sinal de vaidade, logo o mestre me repreendia com particular rudeza e explodia: “Mas o que é que se passa consigo? Sabe perfeitamente que não se deve incomodar com os tiros falhados. Do mesmo modo, deve abster-se de se alegrar com os tiros bem sucedidos. Tem de se libertar desse oscilar entre o prazer e o desprazer. Precisa de aprender a manter-se em serena indiferença, e alegrar-se como se tivesse sido outro, que não o senhor, a executar um bom tiro. Não calcula como isto é importante.”
(…)

ZEN E A ARTE DO TIRO COM ARCO, Eugen Herrigel

Eugen Herrigel (1884-1955) foi um filósofo alemão que ensinou filosofia na Tohoku Imperial University em Sendai, Japão, de 1924 a 1929 e levou o Zen a muitas partes da Europa através dos seus escritos.

Sem comentários: