domingo, 19 de outubro de 2008

Juventude


Foi graças ao Mário de Sá-Carneiro, ao Dionísio Vila-Maior e ao Brian Muirhead [1]que passei a manhã de ontem a caminhar pelo Porto. Eu já tinha encomendado o Céu em Fogo mas o livro não chegou a Milão por causa da greve dos correios; estava destinado que teria de descer a Rua da Fábrica para o encontrar. Tentei a Lello [2]mas nada, esgotado! Perguntei onde poderia encontrar, nem que fosse a edição de bolso da Europa-América. Mandaram-me para a 31 de Janeiro. Como sempre, não liguei às instruções, segui no caminho oposto e… lá estava, a 5ª edição da Ática, quase nove anos à minha espera, com nove anos de pó em cima. O dono da livraria, contemporâneo da primeira edição, pareceu contente por ter-se visto livre dele como se estivesse a ver-se livre de uma maldição. Estranho!
Desci a rua (a tal, a da Fábrica) a lê-lo. "Dor, acre, sucata leprosa…" Ter-me-ia suicidado antes de chegar ao Coliseu se entretanto não tivesse visto o que vi. Inacreditável!
Bem à minha frente, na Avenida dos Aliados, está a Juventude: Escultor Henrique Moreira, anos 20 [3].
Que contraste. Sentei-me num dos bancos de madeira, a ler o Céu e a olhar para a Juventude, tentando imaginar como seria aquele Passeio Público nos fins do século XIX. Já sabia que o período era de desassossego e mudança mas não entendia como na mesma vintena de anos poderiam ter coexistido em Portugal aquelas duas obras -- uma literária, outra escultórica--, o cinzento e deprimente ambiente suicida de Sá-Carneiro e o jovial, ingénuo e rejuvenescente mármore talhado da Menina Nua (o nome por que é conhecida a estátua no Porto).
Senti que a minha contextualização histórica ainda não me permitia entender a dicotomia. Continuei a ler o Céu. Já tinha lido os posts dos meus colegas relativos à comparação de atitudes entre Cesário e Mário, fiquei com a impressão de que não haveria aí grande discussão, isto é, não é que um seja optimista e outro pessimista, a verdade é que ambos me pareceram bastante pessimistas, desassossegados e nostálgicos, decidi não ir por aí-- apesar de, claramente, terem graus de desassossego bem diferentes! Deixei de parte a análise psicológica-- até porque ainda há que atribua a Sá-Carneiro uma dose considerável de demência que eu não almejo analisar…
Virei-me para os aspectos meramente relacionados com a minha leitura. Depois de identificar alguns elementos comuns entre ambos (a cidade, o movimento, o romantismo, a modernidade) comecei a achar que havia três claras diferenças entre o Verde e o Sá-Carneiro:
O uso do sujeito da narrativa (o Verde é ele próprio, o "repórter" das "sensações" como dizem o Carlos Ferreira e a Armanda; o Sá-Carneiro usa o "outro": o artista; o poeta)
O uso dos sentidos e da percepção sensorial (as alusões sensoriais mais arrojadas de Verde falam de flocos de pó de arroz que pairam sufocadores; Sá-Carneiro fala do ruido acre, globos de ouro tilintantes de luzes)
O ritmo, a densidade e complexidade da narrativa (Verde usa uma narrativa linear, realista, geográfica; Sá-Carneiro revela-se possuidor de uma enorme riqueza de recursos pictóricos (Van Gogh? Munch?)dramáticos, teatrais, recorrendo a imagens fortes, tensão violenta, argumento policial-- o Mistério só se percebe nos cinco últimos parágrafos da novela).

E comecei a pensar nos ismos… simbolismo, ocorreu-me o cubismo-- lembram-se que estive em Málaga há pouco tempo, no Museu Picasso?...

[1) Brian foi o gestor do projecto da Mars Pathfinder, a sonda que aterrou em Marte em 97; ontem contou como tinha sucedido aquele episódio, acerca de uma outra sonda não ter conseguido entrar em órbita por falta de combustível graças a um desentendimento gerado pela conversão de unidades imperiais em unidades métricas -- vicissitudes dos projectos colaborativos à distância
[2] http://cidadesurpreendente.blogspot.com/2005/12/lello-irmo-uma-livraria-deslumbrante.html
[3]fiz o upload da foto da Menina Nua-- a Juventude

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