sábado, 19 de dezembro de 2009

A verdadeira história do pai natal

Há muitos, muitos anos, num tempo em que ainda não havia telefones móveis nem placas de banda larga, um rapaz das bandas de chaves, camionista, foi fazer um frete para uma empresa que fabricava umas bebidas refrigerantes, mesmo em dezembro, em pleno inverno, para refrigerar quem com este frio, vá-se lá saber, mas se me pagam, aqui vou eu. Saiu de chaves no camião, cheio de presuntos para deixar em espanha, que eles lá queriam começar a entrar nesse negócio e ainda estavam a ver como é que aquilo se fazia, para depois carregar os caixotes cheios da tal bebida refrigerante perto de valladolid, que era onde punham o gás na bebida, que era feita à base de água, açúcar e um gás tipo água das pedras mas doce. Como não era parvo, da carga dos presuntos ficou com três que deu como perdidos, até chegou a imaginar uma piada para contar aos amigos a propósito dos três presuntos, do género de dizer que era óbvio que se iam perder porque um porco só com três pernas tem tendência a andar mais para um lado e afastar-se dos outros, da vara, estão a perceber? E da carga das bebidas refrigerantes ainda abriu uma garrafa, que parecia que se estava a rir para ele, com um corpinho de gaja que até dava vontade de beber a acompanhar uma fatia de presunto mas não, não achou piada, porque o doce da bebida não cortava a gordura do presunto, nem ia bem com o salgado e as bolhinhas até o faziam engasgar-se e acabou por ficar com soluços durante quase todo o país basco. Nestas vidas de camionista passam-lhes muitas coisas pela cabeça, e vêem muito mundo, aprendem muito observando os hábitos e as tradições dos outros povos, desenvolvem perspectivas muito mais abertas do que aqueles que não viajam, ou que são apenas camionistas de fretes mais curtos, ou que fazem entregas só dentro da cidade ou numa região, ou mesmo aqueles que são da rodoviária nacional mas têm sempre a mesma volta, andam ali num vaivém para a frente e para trás mas é como se tivessem umas palas de lado, não vêem para além daquilo, e portanto, esta liberdade de vistas e de movimento deu ao nosso rapaz de chaves uma ideia: já que o frete era para zurich, iria passar o natal com um tio que vive em berna e que já não via desde miúdo, porque a vida é assim mesmo, a família é a família mas nem sempre se pode estar com todos e as pessoas fazem as suas escolhas de vida, umas emigram outras não, mas acabam sempre por arranjar a sua vidinha e vão-se as oportunidades de nos encontrarmos e de estarmos juntos quando queremos, mas o importante é que não se perca o contacto e que as pessoas se dêem bem e se tenham em boa consideração e pensem umas nas outras e estejam sempre presentes no coração nas alturas boas e nas alturas más. Dito e feito. Direção: grenoble, que é a maneira melhor de lá chegar a tempo de fazer o frete e passar a consoada com o tio e os miúdos e levar-lhes um presunto e umas garrafas desta bebida refrigerante para o verão, mas eles até são capazes de gostar de a beber agora porque uma vez numa carta lembro-me que disseram que também costumam comer gelados no inverno, mas eles têm casas aquecidas e isso tudo. Sim, que com este frio, não fosse o camião estar sempre a andar e mesmo quando está parado deixo o motor a funcionar que isto a gasóleo gasta pouco e sempre vai aquecendo. Este frio que o nosso rapaz de chaves já habituado a ele vem apanhando ao longo dos pirinéus e agora a entrar nos alpes é um frio de neve e de gelo, de grandes montanhas brancas, de um céu branco cinzento que nunca muda de cor, até as arvores parecem desenhadas com traços negros sublinhados de branco, e o ar tem sempre uns flocos de neve que voam em todas as direções, cobrindo tudo de inverno, e a única coisa quente naquele deserto frio é uma cabina de camião com umas fatias de presunto e umas fatias de pão na véspera de natal. Entrando cada vez mais nos alpes, o rapaz de chaves começa a preocupar-se com as horas, não queria chegar tarde a casa do tio, ainda queria estar um bocado com os rapazes antes do jantar. Aquelas subidas são terríveis, são o pesadelo recorrente dos camionistas, todo o camionista profissional que se preze tem este pesadelo de estar a puxar um camião carregado subindo, subindo, subindo uma rampa interminável, fazendo das bielas coração, queimando diesel a golfos para fazer subir o camião, até que se acorda e pronto. Mas, neste caso, não. Era mesmo uma subida real, e o camião sentia-se cada vez mais cansado, mais velho, mais a precisar de umas férias que ainda não tinha tido tempo de fazer. E pif! Pifou. E pronto, aconteceu a desgraça que estão mesmo a adivinhar. Fazendo de uma história longa um conto, quando a policia da autoestrada chegou ao local já no dia de natal encontrou um corpo quase gelado, dentro de um camião a que tinha acabado o gasóleo durante a noite. Quando chegou o jornalista da imprensa local, já só viu o rapaz de chaves deitado, coberto com um casaco da cruz vermelha com um capuz orlado de um pelo branco que lhe dava a impressão estranha de já ser um velho de barbas hirsutas grisalhas, e quando o levaram para o hospital tiveram de lhe tirar de cima da barriga um presunto de chaves a que ele se tinha agarrado durante a noite para se aquecer. Quando a notícia chegou ao chief executive officer da empresa que faz a bebida refrigerante, ele, imbuído de um forte espírito de responsabilidade social, chamou a agência de marketing, e disse: «quero que este momento seja um marco na história da empresa, façam-me aparecer todos os anos no natal uma campanha publicitária em todo o mundo que seja uma sincera homenagem a este rapaz de chaves…» e é esta a verdadeira história do pai natal.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Vidas saudáveis

No outro dia fui passar o fim-de-semana a casa da Isabel e do Pedro. Conheço a Isabel há mais de vinte anos, fomos colegas de liceu, e conheço o Pedro desde que casaram, há mais de dez. Temos mantido contacto assíduo e gostamos de estar juntos mas ainda não os tinha visitado desde que decidiram mudar-se para o campo. Jantámos, passámos um bom bocado na conversa, e falaram com muito entusiasmo da sua mudança, da qualidade de vida que ganharam, e do sossego que agora têm. Pareceram-me bastante mudados, sobretudo muito mais calmos do que quando viviam na cidade. O campo estava a fazer-lhes bem mas eu tive de admitir que ainda precisava muito da vida e do bulício da cidade, gostava do campo aos fins-de-semana, quando podia, ou quando me apetecia, mas o dia-a-dia tem de ser na cidade. Acabámos de jantar cedo, mais uma vantagem da vida no campo, deitar cedo e cedo erguer… Ficámos ainda a conversar, bebendo um licor de ervas que eles próprios fizeram, ouvindo os barulhos da noite do campo: os cães a uivar, os mochos piando, os carros ao longe na autoestrada. Subitamente, o Pedro levantou-se, e beijou-me, despedindo-se «Ana, vemo-nos amanhã, estou cansado, vou dormir,» e saiu de casa. Eu fiquei sem saber o que dizer. Olhei para a minha amiga Isabel, de olhos abertos, a ver se vinha explicação. Ela nada. Perguntei «que se passa? Porque saiu ele? Não dorme em casa?» A Isabel apercebeu-se finalmente do meu olhar espantado e sossegou-me: «Não te preocupes, querida. Desde que viemos viver para o campo que o Pedro gosta de se deitar com as galinhas. Eu não me importo e, por outro lado, tem vantagens: traz-me ovos fresquinhos pela manhã…»

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Feliz Natal

Há um par de minutos que está ali, estaticamente, a olhar para o céu. Teve um dia terrível, tudo a correr mal, e não via a hora de ir para casa. Desde o almoço que lhe apetecia ir embora, passar na florista para comprar um ramo de rosas brancas, de que o seu anjo tanto gostava, e ir para casa, talvez saírem para beber um aperitivo e jantar fora, reviverem aqueles dias de amor celestial que tinham vivido logo depois do casamento, havia menos de dois meses. De cotovelo apoiado na secretária e o queixo apoiado na mão, deixou-se estar um bocado a olhar para a fotografia no desktop do computador, a admirar-lhe a pele branca, fina, sensual, que lhe apeteceu percorrer naquele momento; e com a seta do cursor, foi-lhe desenhando o contorno do rosto, distraidamente, vezes sem conta, até se aperceber de que estava a fazer uma figura ridícula de recém-casado. Compôs-se, olhou em volta, e suspirou. Que vontade de ir para casa… De repente, o telefone tocou: reconheceu imediatamente o número. Era o seu amor tão desejado. Atendeu, com um grande sorriso e uma voz melada de paixão. Namoraram. Ficou no ar a promessa de um jantar romântico e uma noite especial. Mal pousou o auscultador do telefone, decidiu-se. Vou-me embora. Fechou o outlook, fez shut down, e voou para casa.

Abriu a porta devagar, o ambiente estava preparado para ser íntimo, lareira acesa, a luz fraca e quente, a mesa posta para dois, velas, os talheres de prata da tia… O bip do microondas na cozinha anunciou um timing perfeito. O seu anjo apareceu subitamente num vestido branco, curto, quase transparente. Daí para a frente, tudo aconteceu como ambos aspiravam. Jantaram, trocando carícias, desejo, paixão. Despiram-se ainda na sala, rapidamente, como se fosse a primeira vez, respiraram o mesmo ar, sentiram os mesmos perfumes, percorreram-se cruzando olhares de volúpia. No momento certo, voaram para o quarto, deitaram-se e abraçaram-se: «Boa-noite, meu anjo, adoro-te.» «Boa noite para ti também. Dorme bem.» Embrulharam-se nas asas e adormeceram: os anjos não têm sexo…

 

 

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Acção de formação

A personagem principal desta história é um jovem inteligente e criativo, um pouco envergonhado, e de poucas palavras. Foi admitido há pouco tempo numa grande empresa, devido ao seu currículo e boas referências, e tem conseguido fazer um trabalho muito apreciado mas não sem algumas dificuldades em aprender a lidar com o ambiente corporativo. Os truques e as manhas dos mais experientes não lhe são familiares, e a sua inexperiência e ingenuidade não deixam de se surpreender com o que os seus colegas e chefes são capazes de fazer e de dizer para se coroarem com os louros do trabalho alheio. Disposto a investir o esforço necessário para continuar a fazer um bom trabalho e obter o justo reconhecimento, a personagem principal desta história contribui, dia após dia, com o que tem de melhor, renegando as tramas corporativas. Recentemente, foi bater à porta do seu chefe, para explicar como tinha estado a elaborar uma ideia que poderia trazer grandes benefícios para a empresa. O chefe, do lado de dentro do gabinete, mandou-o avançar, sem levantar os olhos dos papéis: «Meu caro: vejo que está já perfeitamente adaptado à empresa e à maneira como aqui fazemos as coisas. Deixe-me só sugerir-lhe que, dado que gosto de dar aos meus colaboradores toda a atenção que merecem, da próxima vez que queira partilhar alguma coisa comigo, avise a minha assistente com alguma antecedência… assim, estaremos muito mais à vontade e teremos todo o tempo do mundo para falarmos das nossas preocupações e das nossas ideias. Aproveito também para lhe dar os parabéns pela prontidão dos seus relatórios. Não é que eu queira andar sempre em cima das pessoas a saber o que elas fazem, mas é importante para a empresa que eu esteja atento a tudo o que se passa com os meus colaboradores e esteja disposto a ouvi-los e dar-lhes os meios de que eles necessitam para fazerem o seu trabalho. Diga lá, sou todo ouvidos…» A personagem principal desta história, ainda a fazer que sim com a cabeça ao ritmo das recomendações do chefe, e ainda de pé, sentou-se na cadeira à frente da secretária do chefe. Encheu o peito para começar a falar, mas o chefe interrompeu: «Espere um momento, não se esqueça do que vai dizer…» Levantou o auscultador do telefone, e disse: «Traga-me um café. Obrigado». A personagem principal desta história tentou não se esquecer do que ia dizer, mas não conseguiu deixar de se distrair com a interrupção, e pôs-se a pensar na ironia do pedido do chefe: «Traga-me um café…», como se a ordem das coisas se tivesse invertido e o chefe estivesse a fazer uma exclamação acerca do seu estado, isto é, como se o chefe estivesse dentro de uma chávena que se aproximava da boca escancarada de um café (que poderia ser um café liquido ou um café tipo A Brasileira do Chiado…) e se desse conta de que iria ser tragado. Mas, por outro lado, a situação não deveria ser do seu desagrado, porque, a seguir, agradecia: «obrigado». Mas, ainda por outro lado, este «obrigado» parecia pouco espontâneo e talvez ele estivesse de facto a dizer que o tragava um café obrigado, isto é, como se tivessem obrigado um café a traga-lo. Enfim… «Então? Que tinha para me dizer? Não se esqueça de que sou um homem ocupado! Diga lá, vá…» A personagem principal desta história afastou aqueles pensamentos parvos e tratou de se concentrar no que tinha para contar ao chefe. Mas, subitamente, o chefe interrompeu-o mesmo antes de ter começado: «Desculpe, que educação a minha… nem sequer lhe perguntei: que quer que peça para si? Café, água, um chá?» A personagem principal desta história hesitou, apetecia-lhe uma coca-cola… mas lembrou-se daquele vídeo da internet acerca da mistura da coca-cola com os mentos e decidiu que ainda precisaria de algum tempo para se adaptar à ideia. Talvez uma água… Entretanto, a Anabela entrou no gabinete, pousou um café, e disse: «tomei a liberdade de trazer dois…» e deixou outro café em frente à personagem principal desta história. «Aqui tem,» disse o chefe, «ninguém como a Anabela para ajudar a tomar decisões. Rapaz: temos de trabalhar a sua auto-estima. Na minha equipa gosto de pessoas assertivas, de decisões rápidas, não se esqueça. Vamos encontrar um programa de formação à sua medida, para trabalhar esse aspecto.» E, antes que a Anabela saísse: «Anabela, veja-me o programa daqueles tipos que estiveram cá a fazer uma formação o ano passado, aqueles que trabalharam o Benjamim quando a gente o mandou para as vendas, lembra-se?» A Anabela fez que sim, e saiu. O chefe insistiu, depois de ter tragado o café num só gole: «Então? Diga.» A personagem principal desta história percebeu imediatamente que não iria ter oportunidade de beber o café que a Anabela lhe tinha posto à frente, e tratou de tentar concentrar-se o melhor que pode a escolher as palavras para ser assertivo, mudou até ligeiramente a expressão, de forma a que ficasse com um olhar mais agressivo, a condizer com a assertividade do discurso que estava a preparar, mas sem querer parecer demasiado duro, para não criar um mal entendido. Afinal, estava ali para apresentar uma ideia que lhe parecia boa e não queria que a ideia fosse liquidada à partida por ele não ter sabido apresentá-la ou por o chefe se zangar com ele por assumir uma expressão desnecessariamente dura. Na universidade, tinham falado bastante sobre isso, de como as ideias não chegam, de como é necessário vestir uma boa ideia de forma a fazê-la passar, ser bem compreendida, portanto isso não era novidade para ele. Aqui vai… Subitamente, o telefone toca, o chefe atende, põe um ar sério de respeito militar, levanta-se, e diz «sim senhor engenheiro, sim senhor, imediatamente,» pousa o telefone com um longo suspiro que lhe fez escorrer fato abaixo o momentâneo e súbito ar de respeito militar: «Rapaz: tenho de ir imediatamente falar com o senhor engenheiro sobre um assunto da maior importância. Peço-lhe que me faça um relatório breve e conciso acerca do nosso assunto, das ideias que estivemos agora a discutir, ok? Não se esqueça: os seus relatórios são da maior importância para a equipa. Depois, peço à Anabela para o chamar, ok? Obrigado por ter vindo falar comigo.» A personagem principal desta história levantou-se, saiu do gabinete, e foi à máquina buscar um café. Ao fim da tarde enviou ao chefe um relatório sucinto apresentando a sua ideia. Uma semana depois, o chefe mandou-lhe um email: «Analisei o relatório que me enviou na sequência da nossa reunião da semana passada. Na primeira oportunidade, falarei consigo. Fale com a Anabela para combinar as datas para a sua acção de formação na área da comunicação. Falta-lhe assertividade e capacidade de comunicar, temos de trabalhar nisto, ok? Não se esqueça de que terá de ser você a apresentar os pormenores da ideia ao senhor engenheiro» Ficou radiante. Parecia que o chefe tinha gostado da ideia e estava a querer investir no seu futuro propondo-lhe já uma acção de formação e dando-lhe uma oportunidade de brilhar dentro da empresa. Passados alguns dias, recebeu novo email: «Falei com o senhor engenheiro acerca da nossa ideia. Ele ficou entusiasmado e vai libertar uma verba do orçamento para a desenvolvermos. Já fez a formação que lhe propus? Gostaria que fosse você a apresentar o plano de desenvolvimento a toda a empresa» A personagem principal desta história foi imediatamente falar com a Anabela, porque não queria que o chefe achasse que estava ser relutante ou a desperdiçar uma oportunidade. A Anabela, quando o viu chegar disse-lhe: «Já sei que está aqui para combinarmos as datas da sua acção de formação. Vou fazer uma agenda que incluirá outros colaboradores no mesmo programa, e depois digo-lhe quais são os dias, ok?» Assim ficou. Passadas algumas semanas recebeu um email da Anabela com as datas e um outro email do chefe: «Vitória! Dentro de poucos dias faremos a apresentação do nosso assunto ao board e conto consigo. Não fale disto a ninguém, ok? Que tal correu o seu programa de formação? Mande-me um relatório, eu sei que os tipos são bons mas quero ouvir a sua opinião, ok?» A personagem principal desta história consultou a agenda, e confirmou a disponibilidade da data para a acção de formação, que seria daí a poucos dias. No escritório parecia haver uma excitação especial, que ia crescendo de dia para dia. Os colaboradores mais antigos passavam em direcção ao gabinete do chefe e regressavam sorridentes, comentando como o momento era importante para a empresa. A personagem principal desta história tinha a certeza de que estavam a falar da sua ideia, e do sucesso que ela teria, mas não queria abordar o assunto com ninguém, para não trair a confiança do chefe.

Quando finalmente passou um dia inteiro na acção de formação sobre comunicação e assertividade, que lhe pareceu um bocado exagerada na parte da assertividade, pelos gritos e pelo falar alto, a que ele não estava habituado, nem a sua mãe acharia uma coisa boa, voltou ao escritório e fez o relatório que lhe tinha sido pedido pelo chefe, tentando identificar todos os aspectos positivos e sendo o mais objectivo possível. Pouco depois de o enviar, recebeu também por email a resposta do chefe: «Lamento que não tenha podido aqui estar para a apresentação da nossa ideia ao board. No entanto, fico contente por ter achado o programa em que o inscrevi interessante e útil e isso será muito mais importante para a sua carreira do que uma simples apresentação. Fico contente por se ter integrado perfeitamente nesta equipa e conto consigo para me apoiar em ideias futuras.»

 

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Capítulo 3, parte 2

António gostava dos caracóis de Laura, e ficou a pensar neles, ouvindo uma música no rádio. Apeteceu-lhe percorre-los com a mão, ao ritmo daquela música, e senti-los nos dedos, enquanto ela continuava a olhar a estrada interminável. Ela disse que ia trovejar. Sentia a eletricidade no corpo, sentia que a fibra do vestido carregada de electrões lhe fazia um formigueiro. Puxou o vestido curto para cima, como a querer libertar-se de um desconforto súbito, como se o vestido a queimasse, e passou as mãos nas coxas e nas nádegas, devagar. «Vai trovejar». António concordou, com o olhar correndo os pespontos sinuosos do vestido de Laura. Apeteceu-lhe parar, transformar os caracóis num brinquedo, dizer-lhe que gostava daquele vestido curto, subir-lho devagar com as próprias mãos. Fez tudo isso sem lho dizer, beijou-a, mirou-lhe o doce balançar dos seios, deixou-se embriagar pelo seu hálito, sem lho dizer. Já tinham andado mais de mil quilómetros e talvez fosse tempo de parar. Ouviram trovejar ao longe.

 

domingo, 13 de dezembro de 2009

Capítulo 3, Parte 1

Entraram no carro, sentaram-se, e ambos pensaram que aquela viagem não fazia sentido. E, à medida que a estrada se desenrolava, menos sentido parecia fazer. Uma eterna reta, como uma suspensão do tempo, interminável, à sua frente. De princípio, ainda diziam um ao outro, entre risos, que a reta estaria a acabar, que logo viria uma sequência interminável de curvas, como os inevitáveis dias de chuva após dias consecutivos de bom tempo. Mas não. A reta continuou, e eles também. Imaginaram, iludidos pela paisagem, que estavam girando sobre a lua, e que daí a pouco iriam ver o seu próprio rasto, e voltar a passar por cima dele, vezes e vezes sem conta, cumprindo várias circumnavegações. Mas não. A poeira do chão continuava intacta, sem marcas, sem passado, sem princípio, nem fim. A paixão que tinham um pelo outro fazia-os, talvez, acreditar que tudo era normal, e que aquela poeira fina e lunar se dissiparia a qualquer momento para deixar ver uma vegetação primaveril. A poeira não desistia, porém, e deixava-se ficar atrás deles, suspensa. A monotonia da paisagem dissipava-se apenas ligeiramente quando as sombras de nuvens dispersas espalhadas pelo chão acalmavam a luz. Mas, nem árvores cresciam ao longo daquela imensa estrada monótona, reta, e infindável; apenas uns postes de eletricidade, que ao início pareciam postes normais, mas que não eram. Por um bocado, ficaram a matutar nos postes, sem perceberem o que tinham de anormal, mas convenceram-se de que pareciam perseguir as nuvens.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Capítulo 2, Parte 3

Começou a chover. Deitei-me sobre o sofá, a descansar.

Bateram à porta, fui abrir. Briolanja entrou na sala, suspensa no meu olhar, coberta com um lençol. As tranças vermelhas jorravam do branco. Aproximou-se devagar, olhou-me, trouxe o corpo até ao meu. Senti-lhe a nudez fresca, sob o lençol. Amarrado às tranças senti-lhe o fulgor da respiração. Os mamilos tocaram-me, através do tecido branco. Ficamos ali um bocado, como dantes. Passou o lençol à minha volta, e perdi-me no tempo a percorrer-lhe as tranças de fogo.

Acordei com o telefone a tocar. Não atendi. Era Laura, com certeza. Briolanja ainda ali estava. Esperei que o telefone tocasse novamente e atendi. Era Laura. Tinha parado de chover, o arcoiris riscou o céu, sobre a casa dos gerânios e das sardinheiras. O fogo das tranças de Briolanja extinguiu-se, e todas as espirais pararam de rodar. Quando me levantei, o marcador azul caiu no chão, aos meus pés. Encontrei-te!

 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Capítulo 2, Parte 2

As janelas sem cortinas revelam que já não há vida própria nesta sala, já não se requer privacidade, tudo o que aqui se passar a partir de hoje não interessa a ninguém. Já aqui não moro, sou apenas o narrador de uma história que muda de capítulo. A rua toda pode entrar pela sala, os olhos não se detêm no limite das paredes. Experimentei passar para além do limite. Olhei para além da janela, ultrapassando o que eu tinha definido como o meu próprio espaço. Aquela casa, em frente, com os gerânios e as sardinheiras no canteiro. Agora que as janelas cumprem finalmente o papel de serem uma abertura para fora, apercebo-me de que sempre ali esteve, afinal. Levantei-me, e fui à janela. A casa de Briolanja, a professora de liceu que fazia orais nos dias quentes de Julho. Briolanja e as suas tranças ruivas, belas espirais de fogo. Tantas vezes envolto naquelas tranças.

 

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Capítulo 2, Parte 1

Por toda a casa um imenso vazio de caixas cheias. Um mundo que se divide entre as coisas que ficam sufocadas debaixo de lençóis brancos e as coisas que partem dentro de caixas com endereço escrito (onde pus eu o marcador azul?). Ou talvez sejam dois mundos que seguem uma trajectória diferente, duas elipses, ou duas espirais com sentidos de rotação inversos, positivo contra negativo, horário contra directo. E eu sento-me numa caixa amordaçada por fita cola (tem escrito “livros”), com a certeza de que tomei a decisão certa, já cansado de passar o dia a empacotar os melhores pedaços da minha vida. Alguns ficarão. O peixe vermelho, ofereci-o à cara redonda que todas as manhãs a caminho da escola se vinha esparramar na janela da cozinha, do outro lado do aquário (os peixes vermelhos detestam mudanças, tanto tempo andam à volta do aquário que acabam por se tornar animais territoriais, como um cão de guarda que todos os dias dá a volta à quinta). Queria levar outros pedaços, recordações, coisas que senti, coisas que vi, ideias que tive ao folhear um livro, e que me mudaram a vida. Mas não sei onde estão. Alguns pedaços voltarão a aparecer quando voltar a abrir estas caixas, no destino. Outros ficarão, gravados nos riscos do soalho, ou na moldura escurecida de pó à volta dos quadros. Agora, ao olhar para as paredes, percebo como são importantes os quadros, porque me recordo de sempre os olhar sem me dar conta de que lá estavam. Agora, que a única coisa que se vê é a alma deles, delineada numa sombra de pó… E agora, que o branco dos lençóis e das paredes vazias me devolve toda a luz e os sons, num eco que anuncia uma partida.

 

domingo, 29 de novembro de 2009

Capítulo 1, Parte 2

Laura teve a impressão de que alguém os seguia. O instinto transformou o desconforto num bater de coração mais forte. Vinha gente. «António, tenho medo!» Apurou os sentidos, sentia-lhes o peso dos passos – aproximavam-se. Um grupo de pessoas que veio de qualquer lado chegou-se-lhes muito perto. De súbito, sentiu algo inexplicável, olhou para trás, por cima do ombro de António, e viu um rosto grotesco, enorme, uma máscara horrenda, salpicada de manchas, como cicatrizes de queimaduras profundas. Desviou o olhar, agarrou o braço de António. António estacou entre a figura grotesca e o corpo belo e trémulo de Laura. Abraçou-a. «Espera!» O monstro empurrou-os, ameaçador, como se não houvesse mais por onde passar. Afastou-se. O grupo passou, mudo, sem expressão, mas deixou no ar um cheiro acre de perigo, e de ameaça velada.

 

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Capítulo 1, Parte 1

Desenleavam um fio de descobertas sem fim, como da primeira vez que se sobe à montanha para ver os vales e se ouve o eco da própria voz, ou que se vê o mar quebrando-se em espuma nas fragas sob as asas das gaivotas, ou que se entra numa casa abandonada, que ali estava há anos, cheia de segredos antigos. Tinham iniciado uma viagem sem guia, nem intérprete, onde o irreal permanece inexplicável, como um sonho de criança que nos acompanha durante toda a vida. Cresceu-lhes a impressão de que é o tempo que modela tudo: as casas, os caminhos, todas as pedras, as portas e as janelas, as vidas. Não há mão de homem, o que se vê é apenas a poeira do tempo, como se as horas e os dias e os anos que passam se transformassem num sedimento, numa poeira, preenchendo todos os poros, como o fio de areia que cai de uma ampulheta. Esta poeira depositada é macia, fina, e uniforme, como a areia do deserto acarinhada pelo vento, como uma película de neve de manhã ao acordar, ou como uma pele jovem e luminosa que cobre um corpo revelando formas escondidas, voluptuosas, proibidas.

António e Laura viam um no outro a sua própria admiração. Geometrias estranhas reflectidas no rosto de cada um.

«Esta cidade, estes prédios, esta gente…».

«Que estranho, repara na cor da terra». Sentiam-se exploradores como os que descobriram palácios maias, ou pirâmides egípcias, ou jardins babilónicos.

«E este silêncio, esta mudez…». As pessoas não falavam, tampouco sorriam. Um silêncio frio de neve amplificava as mais pequenas expressões de pasmo (as cidades calam-se quando neva, tudo fica coberto por uma leve película de silêncio). Andavam pelos caminhos olhando à volta e olhando-se a eles próprios, por vezes, para confirmarem na troca de olhares o assombro do que viam.

 

 

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Tempestade de Verão II

As sombras dos prédios atiram-se com violência umas sobre as outras, sequência infinita de reflexos, nunca iguais, é como se um fotógrafo estivesse enlouquecendo e quisesse de repente capturar todos os ângulos possíveis da mesma paisagem, disparando flashes sobre flashes, como se o mundo estivesse no fim e fosse essencial fixar aquele momento, todas as paredes, todos os carros, todas as pessoas, todas as pedras de granizo enormes que caem, violentas, sobre tudo e sobre todos, como miúdos apedrejando sem dó os gatos num telhado de zinco.

Numa varanda, um homem vê na tempestade: os nazis que marcham para norte, e os aviões americanos e ingleses que vêm da Sicília para libertar Milão: os homens de deus, largando as bombas que o seu deus não sabe largar.

O barulho é ensurdecedor, diabólico, aterrador.

Num bar, um homem atrás dos vidros enrugados pela chuva olha para o céu e cada relâmpago ilumina-lhe o medo que deixou para trás, na Pérsia, de onde fugiu por amor e por amor à vida, buscando noites com irmãos sem gritos, sem terror. Como se pode fugir de um deus omnipresente?

A igreja de San Lorenzo perde um pouco da sua história, arrancado por uma de tantas bombas que caíram sobre Milão nessa noite. Também o Pallazzo Reale perde uma parte; as bombas não caem apenas sobre os comboios que abastecem os nazis; caem sobre as pessoas, as casas delas, e elas fogem, ou morrem.

Os nazis continuam a marcha para norte, sob as chispas do céu. Milão está a ser libertada, mas os outros também fogem, receando as bombas, sem comida, sem casa, sem história.

Buscava um céu sem sirenes, sem silvos de bomba, sem terror, sem ter de sair de casa de noite agarrado à mãe e aos irmãos, sem ter de pensar que um dia também ele faria a guerra. Chamava-se ArmAm: Esperança.

Agita o copo com sumo, faz tilintar o gelo, sob a luz de um relâmpago vê numa varanda a silhueta de um homem, que acha familiar. Também o outro olha para baixo e vê Esperança. Também julgou conhecê-lo: uma noite em que viu aqueles relâmpagos pela primeira vez, e conheceu um iraniano que fugia da guerra e que não tinha medo de tempestades.

 

Milão, 4 de Novembro de 2009.

MS

 

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

José Luís Peixoto

De visita a Lisboa acabei a conversa com o advogado, meti-me no carro e, sendo sexta-feira, fui à fnac no Colombo. Comprei o Cemitério de Pianos, do José Luís Peixoto. Já tinha lido um livro de poesias dele, recente, não me lembro como se chama, que comprei na feira do livro de Lisboa (e que o vendedor, enquanto eu estava a pagar, recebeu um telefonema do editor a quem disse, com ar de crise económica, que tinha acabado de vender o último livro do José Luís Peixoto…) e, antes, tinha lido a Cal, Nenhum Olhar, e Morreste-me.

Não sabendo por que razão havia de ficar em Lisboa, fui para Setúbal, com a ideia de comer um peixinho grelhado no Baluarte do Sado, o único sítio do mundo em que sei que sabem como gosto do peixe e sei que o fazem sempre como eu gosto. Mas, não sei porquê – sei, mas não interessa explicar…-- acabei no Baluarte da Avenida, que é da mesma família, mas onde eu nunca tinha estado; decidi experimentar (se não andas a fazer nada errado é porque não andas a fazer nada de novo…); pedi cherne (mal passado, é só tirar o sangue), uma salada de alface, tomate, e cebola, temperada com azeite, vinagre, e sal grosso (quem achar que isto não é importante, escusa de ler o resto). O cherne estava bom, peguei no José Luís Peixoto e comecei a ler. E comecei a chorar. Livros bons são aqueles que se invejam. Lembrei-me daquele telefonema do hospital: não sei se já lhe disseram que o seu pai morreu… Não tinham dito, mas eu sabia. Acharam que o cherne não estava bom. Mas estava. José Luís Peixoto: és um excelente escritor, parabéns pelo teu trabalho.

 

sábado, 10 de outubro de 2009

Aeroporto de Budapeste

És casado com uma alemã? -- perguntou-me o meu amigo suíço.

Porque perguntaria ele isso? A minha mulher tem uma cor de pele e uma cor de cabelo que facilmente a fariam passar por alemã, mas ele não sabe disso, não a conhece. Era a primeira vez que nos encontrávamos, apesar de ouvir falar dele há muito tempo, pois temos um amigo comum.

-- Usas a aliança na mão direita, os alemães fazem isso -- disse.

E os espanhóis também, mas não sou casado com uma alemã nem com uma espanhola, a minha mulher é portuguesa. Quando nos casamos, não tínhamos pensado em que mão usaríamos a aliança, nem tínhamos pensado que o assunto era protocolar, decidimos ali, na altura, que a usaríamos na mão direita.

Lembrei-me desta história quando olhei para o homem que está sentado à minha frente, num restaurante de aeroporto. É alemão, com certeza, pois usa a aliança na mão direita e tem a cor da pele e a cor do cabelo como a minha mulher.

É triste estar num aeroporto esperando pelo último voo da noite, enquanto tudo se vai fechando, todos vão para casa ou para o destino seguinte. Pouco a pouco, as lojas vão ficando vazias, as portas de embarque recebem os últimos passageiros e fecham, nos restaurantes e bares começam a limpeza, preparando tudo para fechar. Todo o bulício do dia se apaga e, apesar de tudo isto ser melancólico, é também curioso observar que uma nova vida vem ao de cima. Os empregados das lojas e dos restaurantes ganham vida própria, deixam se ser personagens de um aeroporto impessoal para passarem a ser pessoas, falando uns com os outros, de uma loja para a outra, sem serem interrompidos por um cliente que pede uma cerveja ou pelo barulho das chamadas de altifalante. Fecha-se o aeroporto, acaba um dia em que as vidas de milhares de pessoas se cruzaram no mesmo sitio sem , de facto, se terem cruzado. Amanhã, tudo renascerá e acabará da mesma forma. O homem alemão que estava sentado à minha frente levantou-se e foi para a porta do voo que parte para Zurique. Pode ser suíço, como o meu amigo.

Ainda faltam três horas para o meu voo mas o aeroporto está praticamente vazio. No bar, pedi uma garrafa de vinho, uma salada, e batatas fritas. Apetecia-me escrever, abri o caderno e comecei a escrever. Foi a primeira vez que o fiz para responder a uma vontade verdadeira de o fazer. Espontaneamente. Até aqui, tenho-me limitado a escrever os meus exercícios do curso de escrita criativa, com um objectivo bem definido.

Estou a ficar preocupado, não esperava que este voo fosse apenas para mim mas não vejo mais passageiros no aeroporto. Várias coisas podem ter acontecido: toda a gente decidiu voar para Zurique, deixando todos os outros destinos sem passageiros; posso estar no terminal errado; ainda é tão cedo para o meu voo -- faltam duas horas e meia -- que os outros passageiros ainda não chegaram; este é o voo que leva todos os empregados do aeroporto.

No bar à minha frente, uma espécie de pub inglês, mobiliário de madeira, mesas altas e cadeiras altas, tudo castanho, de boas madeiras de tradição inglesa, um grande balcão, tendo por trás uma grande estante com prateleiras, fundo espelhado, nas prateleiras garrafas de vinho e livros…

A senhora que faz a limpeza do aeroporto -- espero que tenha alguém para a ajudar, apenas a vejo a ela e o aeroporto ainda é grande… -- poderia ser condessa de qualquer coisa. Não sei mesmo se não será uma condessa húngara, cujos parentes perderam tudo o que tinham e que se viu obrigada a trabalhar nas limpezas. Provavelmente teria uma boa cunha, porque lhe deram o aeroporto todo. Tem pele clara e é ligeiramente arruivada, cor de rosa, dir-se-ia. Veste-se toda de branco: calças, uma espécie de bata, meias, chinelos, luvas, tudo branco. Usa um badge do aeroporto.

Vejo um aspirador no chão, no pub. Estou quase a oferecer-me para dar uma ajuda, aspirando. Nunca aspirei um aeroporto; quem sabe posso dar uma ajuda à condessa. Talvez isso me dê descontos nos voos. Da próxima vez que comprar um bilhete, digo:

-- Oiça lá, não me faz um desconto? Olhe que, uma vez, aspirei o aeroporto de Budapeste. Eu e uma condessa, ouviu? E bem sujinho que ele estava…

Villànyi Portugieser será vinho português? Que estava eu fazendo no aeroporto de Budapeste bebendo vinho português? Que, por acaso, não é mau de todo…

A livraria fecha. Afinal, há mais passageiros: vejo passar uma senhora, também ela parece alemã, que vem procurar algo para comer no selfeservice atrás de mim. Procura na vitrina das bebidas, acaba por não tirar nada, detém-se em frente ao balcão dos bolos mas vai-se embora .

O pub à minha frente começa a ficar interessante:  limpo, as garrafas e os livros impecavelmente arrumados na estante, as chávenas de café empilhadas em cima da máquina de café, o chão já sem papéis, limpo, por um momento o pub parece um sitio agradável -- sem ninguém.

Reparo que a menina do balcão de câmbios  ainda lá está dentro, como se estivesse dentro de um aquário. Destaca-se porque o balcão está profusamente iluminado, em oposição ao balcão da livraria, que já fechou.

Nos últimos minutos noto mais movimento, pouco esperado num aeroporto que está  a fechar -- já faltam dez para as nove! -- passam grupos de pessoas, todas poderiam ser minhas co-passageiras no voo das onze para Atenas.

Nada mau, este portugieser…

 MS

 

Nota:

Villányi Portugieser - Wunderlich Winery

 

The most beloved child of local wine-growers, the specially named Portugieser is a variety that manifests its very wholeness and beauty in Villány. This warm-hearted wine turns even the introvert into wine lovers, being openly straightforward with beginners and always rewarding the faithful with ever new surprises. Ripening earlier than any other blue grape varieties, the Portugieser is a protean grape that entices one to make young wine by as early as Martinmas. Classic bright ruby in colour, it has a fragrance of fruits and spices at the same time, apple and some cinnamon, pomegranate and a touch of nutmeg and Brazilian pepper. A hint of elegance of cherry and, indeed, the grace of violet appear, as well. When tasted, it is dry with soft and silky acidity that is typical of this variety and warm in character as wines from this terroir normally are. The Jammertal Terroir, one of Villány's outstanding plots, Villányi Portugieser (15000 bottles) gives a wine of great quality, which explains its inclusion in our selection.

 

Pasted from <http://www.szolobirtokos.hu/villanyeng.html>

 

 

 

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Ithaca

When you set out on your way to Ithaca
you should hope that your journey is a long one:
a journey full of adventure, full of knowing.
Have no fear of the Laestrygones, the Cyclopes,
the frothing Poseidon. No such impediments
will confound the progress of your journey
if your thoughts take wing, if your spirit and your
flesh are touched by singular sentiments.
You will not encounter Laestrygones,
nor any Cyclopes, nor a furious Poseidon,
as long as you don’t carry them within you,
as long as your soul refuses to set them in your path.

Hope that your journey is a long one.
Many will be the summer mornings
upon which, with boundless pleasure and joy,
you will find yourself entering new ports of call.
You will linger in Phoenician markets
so that you may acquire the finest goods:
mother of pearl, coral and amber, and ebony,
and every manner of arousing perfume ―
great quantities of arousing perfumes.
You will visit many an Egyptian city
to learn, and learn more, from those who know.

Bear Ithaca always in your thoughts.
Arriving there is the goal of your journey;
but take care not to travel too hastily.
Better to linger for years on your way;
better to reach the island’s shores in old age,
enriched by all you’ve obtained along the way.
Do not expect that Ithaca will reward you with wealth.

Ithaca bestowed upon you the marvelous journey:
if not for her you would never have set out.
But she has nothing left to impart to you.

If you find Ithaca wanting, it’s not that she’s deceived you.
That you have gained so much wisdom and experience
will have told you everything of what such Ithacas mean.

Constantinos Kavafy
(translated by Stratis Haviaras)
in http://www.cavafy.com/poems/content.asp?id=286&cat=1

sábado, 18 de julho de 2009

Gel de banho

Devo ser estúpido para me pôr em cima de uma bicicleta em pleno inverno, nesta cidade hostil a ciclistas, enjoativa de fumo e gás, estradas de pedra molhada e carris de tram escorregadios como manteiga. Mas é assim que gosto de ir para o escritório. Desde dezembro que uso as novas bicicletas de aluguer de Milão, pagando uma subscrição anual. Pouca gente usa ainda este serviço, muitos me vêm perguntar como funciona, como se faz, quando custa. Dou estas informações com prazer, orgulhoso por ser um dos primeiros.

Pego na bici, rolo até ao Duomo – sinto o ar frio na cara— continuo em direcção ao Scala, e preparo-me para virar à esquerda, onde já sei que é proibido. Acelero para ganhar espaço para virar, e estúpido, escorrego bruscamente em cima do carril do tram, a bici toma o freio nos dentes, atira-se ao chão, afunda-se no empedrado, eu com ela, meto a cabeça para dentro para não ficar com o nariz colado às pedras, oiço os carros e as motas passando por mim, enrolo-me como posso numa técnica que os samurais inventaram há centenas de anos, et voilá, volto a pôr-me de pé, rapidamente, em frente a uma bela ragazza loira que me elogia os dotes atléticos e que eu quase não vejo porque estou curvado sobre o meu peito, com uma dor estúpida e aguda. Pego no animal cor de laranja, a custo, pedalo devagar até ao escritório. A dor cresce, preciso mesmo de hospital. Seis horas mais tarde volto a casa, de bici, claro, tudo bem, nada partido, radiografia dixit, ficam apenas as dores e uma história para um exercício de escrita…

Acordei com menos dores, ainda débil. Levantei-me, osso por osso, respirando fundo. O iPod, ainda ligado, escorria um fio de musica que não se distinguia, abafada pelos bulício da rua. Tomei um duche, desarticulado, ensaboei-me com o resto de uma embalagem de champô, com a mulher fora e a empregada sabe-se lá quando virá, precisando de ir às compras. Fiado em que o esqueleto cumprisse a obrigação de se manter de pé saí, levei os ossos doridos a desentorpecer, pus os dentes a mastigar um brioche, e escaldei as goelas num capuchinho. Quando a cafeína me irrigou o cérebro, percebi que o telemóvel estava desligado. Merda! Descarreguei na bateria todas as culpas de um casamento desfeito. Quantas vezes me terá ela telefonado? E por que estúpida razão se teria o telefone desligado exatamente nesta noite? Quase nunca viajo, e tu, meu vadio, apanhas-me num congresso e desligas-me o telefone!

Tento ligar-lhe. Nada. Telefone desligado, deve estar no congresso, ligarei mais tarde, lembro-me de ter adormecido ouvindo Piazzola a contracompasso com um bip distante de bateria descarregada, grande desculpa…

Volto a casa. Mal ponho a chave na fechadura a porta abre-se. Está alguém em casa. Terá regressado mais cedo? Chamo-a. Nada. Em cima da cómoda está um bilhete, escrito por ela: Maria, ligaram do hospital, o meu marido teve um acidente de bicicleta e morreu, limpe a casa, volto assim que puder, compre gel de banho.

domingo, 24 de maio de 2009

David Byrne Journal

Quem é que quer saber de listas de classificação dos 50 melhores restaurantes do mundo quando o David Byrne diz que o melhor peixe grelhado se come no Bairro Alto? Ora vejam.

David Byrne Journal

Marttiini

Quando precisarem de uma faquita para filetar peixe como deve ser, Marttiini.

Marttiini

A Mercy: A Novel by Toni Morrison | LibraryThing

Fui à apresentação do último livro de Toni Morrison “A Mercy” traduzido em italiano com o nome “Il Dono” (a dádiva, a oferta). Estavam, para além da Morrison, Umberto Eco e um tal Luigi Sanpietro, moderador. O moderador fez uma introdução, tentando explicar porque tinha chamado ao debate “A História: quem a faz e quem a escreve—uma conversa com Toni Morrison” e não conseguiu explicar nada, a não ser a sua presença supérflua. Umberto Eco incidiu em considerações sobre o romance histórico, mas a verdadeira conversa, a partir do tema da escravatura, fê-la Toni Morrison, falando tranquilamente do racismo. Serena, vernacular, e criativa, com uma voz grave – que leu dois pedaços do livro – Toni revelou-se uma excelente professora de literatura, objectiva, clara, e apaixonante. Falou de como tinha crescido em Lorain, Ohio, uma cidade de emigrantes, de muitas origens diferentes, onde o conceito de “whiteness” não existia, e de como se surpreendeu quando, em 49, foi estudar para Washington, onde existiam letreiros de “colored only”, e de como achou aquilo curioso e mandou um para a mãe, como recordação.

Ainda não li “A Mercy” mas fiquei a saber que fala da história de uma jovem, descendente de portugueses, “with the hands of a slave and the feet of a Portuguese lady”, oferecida pela mãe a um negociante, Jacob, como paga por uma colheita mal sucedida e, segundo Toni, com a convicção de que poderia dar-lhe uma vida melhor.

A Mercy: A Novel by Toni Morrison | LibraryThing

terça-feira, 19 de maio de 2009

Sala

É uma sala simples, quatro paredes, um tecto, e um chão. O chão destaca-se, reverberante, como num desenho de Escher. Não fosse o chão, obra de marceneiros que já não há, a sala poderia estar num hospital antigo: janelas altas, paredes altas, radiadores de ferro dos Anos 40: tudo branco. Na parede voltada a sul, duas janelas – uma é de sacada— aquecem a sala, deixam entrar de manhã dois grandes rectângulos de luz que se projectam no chão e roubam a cor aos tacos de madeira. No lado oposto, um longo e preguiçoso sofá castanho convida a dormitar olhando o ocre ensolarado dos prédios em frente. Acima do sofá, Cargaleiro e Mário Rodrigues não se deixam tocar pela luz. Noutro canto da sala, Nadir Afonso e Pomar, também incólumes. Frente a uma terceira janela, uma estante baixa com uma televisão -- quase sempre desligada -- e a “aparelhagem”, de onde sai Debussy, com a luz clemente das quatro da tarde pelas costas. Já se ouve tilintar a frescura das caipirinhas no bar cubano da esquina, nesta sala quente de Maio.

Neblina

TEXTO ORIGINAL

“Com a chuva, a neblina ia-se rasgando, descendo, separando-se em farrapos e deixando a descoberto trechos de terra, como se dum mar de espuma surgisse um arquipélago. Sobre as pedras lavadas apareciam as mulheres; retardatárias, que caminhavam, apressadamente, em direcção à igreja, uma das mãos no guarda-chuva, a outra a levantar um pouco as saias, para que a água não as esparrinhasse. Não se via o rosto de nenhuma delas.”

Ferreira de Castro, A Missão - 3 novelas (A Experiência), Guimarães & Cª., Lisboa, 1954

RESCRITA 1

A precipitação arrefece o ar, obrigando a neblina a dissipar-se, formando bancos, aumentando a visibilidade (se a visibilidade fosse inferior a 1000 metros, chamar-se-ia nevoeiro). Algumas mulheres, olhando para o chão, caminham rapidamente sobre o empedrado molhado, em direção a uma igreja: protegem-se da água que cai com um guardachuva que seguram aberto numa das mãos; e da água que respinga do chão protegem as saias, puxando-as acima, para que não se molhem.

RESCRITA 2

Manhã sem sombras. Agora chove. A neblina dissolve-se e deixa em nós uma humidade triste de litoral. Atravessam-nos carreiros apressados de mulheres que nos seguem com os olhos os contornos molhados: a chuva caindo das varetas dos chapéus esculpe eternamente em nós o caminho da igreja. Em gestos de mulheres, levantam as saias: que não se ensopem. Não se vêm as mãos de nenhuma delas.

Madame Lambertin

TEXTO ORIGINAL

“Madame Lambertin era flamenga à vista desarmada, e de maneiras bastante livres, mas com certa tinta bondosa. Devia passar bem dos trinta. Quando sorria, o sorriso enchia-lhe a cara toda. Tinha os olhos verdes e bastante vivos. Da janela do meu quarto passei a vê-la atravessar todos os dias a rua, a caminho da brasserie da esquina, em frente, onde ia aplacar um deus insaciável. Voltava com uma cabazada de garrafas de Gueze. Chegava a beber (soube-o depois) às dezoito e vinte por dia. Era decerto o que lhe estragava a frescura, ainda apreciável através da retícula vermelha que já lhe bordava as faces.”

(José Rodrigues Miguéis, Léah e Outras Histórias, Editorial Estampa, Lisboa, 1960)

RESCRITA 1

Costumava vê-la passar, da janela do meu quarto. Madame Lambertin era bem constituída, alta, os seus braços ampliavam-lhe os movimentos do torso, como dançando. A pele, rosada, quase branca, fina, brilhante. No rosto oval a testa, longa, emoldurada por cabelos castanhos, quase vermelhos, uns olhos verdes, e uns lábios que começavam finos nos cantos da boca e se intumesciam no centro, desenhando um pequeno coração que se abria num amplo sorriso bondoso. Atravessava a rua para entrar na brasserie como se atravessasse um campo de papoilas, em busca da fonte do “champanhe de Bruxelas”, que bebia em abundância sem se preocupar com as finas linhas vermelhas que a cerveja já lhe cinzelava no rosto; secando-lhe a frescura de bem mais de trinta primaveras.

RESCRITA 2

Madame Lambertin. A verde bondade dos seus olhos. A doçura de um néctar rosado de pêssego, transparente, a formigar na língua. Uma vivacidade refrescante, leve, mineral. Todos os dias as bolhinhas de Gueuze – o champanhe de Bruxelas -- a atraíam à brasserie, de onde regressava com um largo sorriso e uma vintena de garrafas. O líquido bebia-lhe com prazer o corpo ainda jovem, aflorando na face em finas linhas vermelhas que um pintor da escola flamenga teria retratado num delicado craquelê, revelando os seus bem mais de trinta anos.

domingo, 10 de maio de 2009

Itália, país de oportunidades

Saí de casa com a sensação de que me tinha esquecido de qualquer coisa – o que raramente acontece. Achei que poderia não ter o bilhete de identidade; sem ele não poderia viajar. Não pensei mais nisso, apenas antes de embarcar me voltei a lembrar do assunto e procurei: não tinha. Veio-me a ideia clara de que o tinha deixado no bolso do casaco com que viajara no dia anterior… Procurei uma funcionária da companhia aérea e perguntei se poderia viajar com outro documento: carta de condução, por exemplo. Não, sem documento de identidade não se viaja, poderiam abrir uma excepção e deixar-me viajar exibindo a carta de condução, se já estivesse de regresso ao meu país de residência, mas, neste caso, em início de viagem, não. Decidi tentar a polícia, talvez me pudessem passar uma declaração que me permitisse viajar apenas com a carta de condução (afinal de contas, trata-se de um documento europeu). Fui ao gabinete da polícia, estavam três polícias olhando para um computador.

-- Posso entrar? Esqueci-me do meu documento de identidade, que possibilidades tenho de viajar com outro documento?

-- Que documento?

-- A carta de condução, por exemplo?

-- Não, com a carta de condução não pode viajar. Como entrou aqui? Que documento mostrou para aqui estar?

-- Apenas o cartão de embarque.

-- E como lhe fizeram o checkin sem ter mostrado um documento?

-- Fiz o checkin online.

-- E recusaram-lhe o embarque?

-- Ainda nem sequer tentou embarcar – disse um dos outros polícias.

(Achei que ele queria dizer: o parvo ainda nem sequer tentou…)

-- Não tentei embarcar sem documentos. Percebi que não tinha o documento de identidade e decidi vir aqui perguntar se haveria alguma solução alternativa para viajar.

-- Bom, pode ir para a porta de embarque e tentar…

Comecei a achar que o polícia estava a tentar enganar-me, para depois me poder prender quando tentasse embarcar sem os documentos…

-- Mas, é ou não obrigatório mostrar os documentos antes de embarcar? (eu sabia que estava a ser redundante, mas estava a tentar encontrar a fronteira entre a moral e a lei)

O polícia abriu muito os olhos, como se estivesse a falar para uma criança, e disse:

-- A menina que faz o controlo de embarque é obrigada a pedir-lhe os documentos mas também se pode esquecer de o fazer…

-- Então, se eu conseguir embarcar porque a menina se esqueceu de me pedir os documentos, como regressarei amanhã de Amesterdão, sem documentos?

-- De comboio…

domingo, 3 de maio de 2009

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Maria João e Mário Laginha

Fui vê-los ao Teatro Donizetti, em Bergamo. Espero que noite tenha sido tão boa para eles como foi para mim. Não consegui aplaudir a interpretação da “Beatriz” porque precisei das duas mãos para me agarrar à cadeira, se não, voava. Mesmo assim, levitei. Acompanhei todas as respirações da João como se fossem minhas. Move-se no palco, sobre as notas do Mário Laginha, como se move no tapete, criando espirais no ar à sua volta, envolvendo com essas espirais os sons que saem do piano, num espetáculo único de harmonia de som, movimento, e cor. A luz estava perfeita, a plateia ao rubro, o Donizetti (1797-1848) deve ter-se sentido orgulhoso.

 

sábado, 25 de abril de 2009

Lisboa

No meio do rio, contemplo a cidade, semi-cerrando os olhos, como um pintor. Para ver os detalhes, aperto a luz entre as pálpebras: ela cai, sem dó, sobre o casario, traçando linhas, esculpindo formas, espalhando cores; brancos, sobretudo, porque a luz é insuportavelmente branca; uma miríade infindável de brancos. Mais tarde, quando o sol libertar as colinas, e as casas se libertarem do alvo esmalte que as cobre, outras cores se revelarão…

A luz é excessiva, supérflua, maior do que a cidade precisa. Uma auréola de santo, um clarão de milagre, um brilho de ouro, todo este excesso de luz, que se foi incrustando na cidade durante séculos, envolve as colinas, as casas, as igrejas, os palácios, os jardins, as árvores, os faróis, os miradouros, os armazéns, os ministérios, o castelo.

Um tranquilo céu azul pousa sobre esta brancura, contendo-a para que não transvase, como uma coberta sobre a massa que dará o pão. Traços pós-modernistas esbracejam no azul, como que tentando libertar a cidade da luz que a oprime; mas, também esses já se deixam sedimentar nesta teia de luz… maravilhosa cumplicidade, o azul e o branco, como num azulejo da Madre de Deus.

Em harmonia com os sons que a brisa sopra no mastro e no cordame – e que apenas os marinheiros reconhecem como música -- escuto o batuque sincopado e hipnótico dos carros rolando na ponte, e dos elétricos rolando ferro na baixa. São ritmos que vêm de outros tempos, e de outros continentes— de quando os navios se abraçavam a este cais, com risos e lágrimas, para receber e largar gentes (agora, os navios deixam no cais, arrumadinhos, os carrinhos “matchbox” com que brinquei em miúdo; que salpicam a margem de cores metalizadas, com garantia anti-corrosão, e outros extras).

As gentes ainda chegam e partem, nos cacilheiros: viajam entre a margem sul e a margem-sol, numa viagem talvez menos dolorosa do que as de outrora… ou talvez não; não há sorrisos, nem lágrimas; ninguém à espera.

Os cacilheiros, na ânsia de chegar e voltar a partir, atiram-se sobre a cidade, deixando cicatrizes nas pedras do cais, marcando-as, atirando-lhes as gentes: os homens e as mulheres que desembarcam somem-se, dissolvem-se na luz; materializar-se-ão mais tarde, na penumbra, cansados e tristes.

Não sei quando voltarei a ver esta luz; mas, sei que aqui estará, para sempre, à minha espera.

O vento vira, a vela bate, viro de bordo, volto as costas à cidade, aproo ao vento, descanso os olhos no horizonte, e parto.

Milano, 25 de Abril de 2009

sexta-feira, 24 de abril de 2009

please disturb

They don't eat, don't drink, don't leave any footprint, therefore they don't exist.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Reencontro

A Madeleine passou cá por casa, jantámos na Cantina della Vetra, e viajámos juntos para Florença. Foi bom reencontrar esta amiga chilena -- sempre um pouco perdida pelo mundo -- depois de quase uma vida sem nos vermos.

Até breve, Madeleine Stein!

ASM-0:AVIANO-0


Aprendam, rapazes!

A Leitaria Gourmet

O meu amigo João Jacinto vai abrir um restaurante que se chama: A Leitaria Gourmet. Vai ser bom, com certeza; assim que puder, vou lá; infelizmente, à inauguração, dia 29, não posso ir.

Aqui fica www.aleitariagourmet.pt

 

Teste

Envio de mensagem para o blogue usando mail

 

quarta-feira, 25 de março de 2009

Mudar de vida

Tenho tido algumas dificuldades em mover-me, em andar; há movimentos que já me custam, tenho maus tratos causados por mim mesmo, que fui amontoando, por causa de actividades físicas saudáveis, diz-se: ginásticas, desportos, artes marciais, quedas de cavalo e de bicicleta, quedas da cama enquanto dormia, brincadeiras com crianças que não sabem medir a sua força, sabe-se lá; o corpo já perdeu a conta às mazelas que foi colecionando e que, agora o atormentam a demonstrar o seu incómodo, a dor, a atrofia… ontem voltei da aula de aikido com o corpo dorido e o tornozelo direito, que era o bom, tão mal quanto o esquerdo, que já não tem por onde se lhe pegue. As costas aguentam-se, vértebra por vértebra num equilíbrio precário de resignação gravítica suspendendo-se uma à outra, ao invés de se suportarem; as articulações, quase todas, desarticulam-se, fazendo-me crer que tendões, ligamentos e músculos estão reduzidos a um monte de elásticos presos precariamente a um mikado ósseo calcinado como uma máquina de lavar roupa em que não se usou o detergente certo durante anos.

Pois bem, como começo a ter dificuldade em lidar com tanta mazela e em tornar tanta dor e desconforto suportáveis decidi que iria mudar de vida. Não pretendo emagrecer ou essas coisas drásticas e difíceis. Sei que perder um pouco de peso ajudaria, tornaria o meu corpo mais ligeiro, reduzindo o esforço sobre os vários ossos, ligamentos e articulações mas, acontece que já tinha pensado, este ano, estabelecer objectivos mais ambiciosos e, em vez de emagrecer, decidi ficar mais alto; a altura tem-me feito falta e, já que o resultado é o mesmo, junta-se a altura à esbelteza.

Para mudar de vida, de forma eficaz e de maneira a resolver os meus problemas articulares, decidi alterar a minha força gravitacional, oferecendo mais oposição à atração da terra, deixando-me levar mais pela lua ou por outros planetas. Decidi levitar. Não muito, alcei-me apenas um pouco acima da superfície do planeta, o suficiente para não ter de suportar sobre as minha pobres carnes terrenas, sacrificadas e maceradas pela porrada e pela estupidez, o peso de si próprias.

Foi remédio santo (cheguei mesmo a pensar deixar crescer uma áurea mas tenho medo que atraia raios), passei a andar muito mais leve, acima da maior parte dos problemas; mais leve, mais rápido e, por consequência, mais barato porque uso ainda menos o carro e os transportes públicos. Percebi que, inclinando-me um pouco para a frente enquanto levito, consigo controlar a minha velocidade de forma muito eficaz, inclinado o corpo para a direita ou para a esquerda, viro, para um lado ou para o outro, de forma mais subtil ou mais abrupta, conforma necessário. Dando um pequeno impulso com os joelhos, para cima ou para baixo, consigo incrementar ou reduzir a minha altura ao solo, em cinco a dez centímetros de cada vez, o que se torna extremamente útil para ultrapassar obstáculos ou evitar bater nas linhas aéreas dos elétricos (embora, normalmente, não me deixe levar por tão altos voos, vou experimentar subir ao telhado do duomo este fim de semana). É fantástico e, apesar de ter começado apenas hoje, já me sinto muito melhor, mais leve, com menos dores e invejado por todos.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Amor à primeira dentada

A Ana Alves e a Isabel Pereira estiveram cá e, pelos vistos, gostaram, dizem até que vão voltar outra vez, até dizem que vão ter conosco a qualquer lado...
Mandaram-me um postal desejando-me um feliz aniversário... mais ou menos a tempo.
Dizem assim:

"Olá Mário!
Este postal só vai agora porque estamos há 1 mês a procurar o «postal certo».... (isto não são reticências, são mesmo quatro pontinhos...)
Finalmente encontrámos esta «pasta» (o postal tem, sobre um fundo vermelho, dois potato men -- mais correctamente um potato man e uma potato woman-- sorvendo spaghetti de uma tijela branca).
Quero dizer-te que a minha ida a Milano foi muito boa, adorei, fui muito bem recebida, comi muito bem. Ultrapassei muito as minhas expectativas.
PARABÉNS! com algum atraso, que sejas feliz, simpático e sempre pronto para comer e fazer bons pitéus. São duas coisas boas da vida!.... (quatro pontinhos, novamente) Se vocês continuarem em Milão, eu queria voltar aí.... (idem) Se forem para outro sitio qualquer também quero ir. Obrigada pela vossa tão boa maneira de receber as «friends».
As «meninas» mandam beijos para Mário+Ana+Joana
Até breve."

Mais duas moscas no mel... Obrigado pelos parabéns, apesar de atrasados-- não se preocupem, na minha idade o desvio padrão não é significativo; ademais, justifica-se pelo sucesso do postal "amor à primeira dentada", fiquei derretido, duas garotas giras a mandarem-me um postal a prometer amor e... com dentadas! que haverá melhor?
Gostámos muito de vos ter cá. Esperamos que voltem em breve, quanto mais cedo, melhor! Não sei o que sucederá depois do credit crunch... o mundo não voltará a ser o mesmo e não sei se vos poderemos prometer melhor do que Milão (as tendências são Marrocos e Angola!) mas tentaremos dempre encontrar umas galerias vittorio emanuelle que vos convenham (o equivalente em Luanda creio que será o mercado do roque santeiro) e, na pior das hipóteses, um qualquer kashbah em Africa....

PS: A exposição sobre OS FUTURISTAS estará no Palazzo Reale até Junho e vale a pena ver!

A presto
Mario+Ana+Joana

quarta-feira, 18 de março de 2009

Sei que a Primavera já chegou

Sei que a Primavera já chegou a Milão. Não é porque já tenha chegado o dia do equinócio ou porque tenha sido decretado por alguém. Também não é porque já tenha tido tempo de ir comprovar que a minha árvore preferida – aquela por trás do Duomo – floriu. Tenho a certeza de que já floriu. Chegou, porque chegou. Chegou, porque deixou de estar um frio de não querer ir para a rua – eu, agora quero ir para a rua, quero estar na rua sempre que possível. Chegou, porque a luz é de uma luminosidade primaveril, de uma cromática enternecedora – e não de um cinzento devastador e frio. Chegou, porque as fachadas dos prédios se vestem de cores pastel e se iluminam. Chegou, porque o azul do céu do fim das tardes contrasta com essas fachadas numa combinação pictórica perfeita. Chegou, porque chegou.

sábado, 7 de março de 2009

Troia e o sol de quase primavera

Há muito tempo que não vinha ao blogue, apesar de ter prometido que viria. Estou certo de que, a esta hora, já perdi todos os leitores que, de si, já não eram fiéis. Também, pouco aconteceu. Aconteceu o credit crunch, caí da bicicleta em frente ao scala e acabei de combinar nova visita do alexandre & gang a milano, em início de maio. O programa incluirá ida à opera, Rake's Progress, a 2 de maio (hoje estivemos em troia, comemos percebes, ameijoas, camarão e cherne, o trivial...). Acho que ainda vai dar para ver a magnífica exposição dos Futuristas, que estará no Palazzo Reale até junho.